domingo, 24 de fevereiro de 2008

Natal de moradores de rua de São Paulo e o ódio da Guarda Civil Metropolitana - por Soninha

Pós-guerra

“Desce daí, sua vagabunda! Filha-da-puta!”

Eu já estive em um número suficiente de shows de rock, em cima do palco ou diante dele, e de partidas de futebol, para me abalar com xingamento. Ou coisa pior: em um Skol Rock, levei um copo amassado na testa (bem achatadinho, parecia uma estrela ninja, com grande aerodinâmica). Não, aquele público não tinha nada contra apresentadores da MTV, mas era minha 12ª. entrada no palco. Nas onze anteriores, tinha anunciando as bandas novatas que eram as finalistas do festival, mas os milhares de pessoas presentes estavam ali para ver as duas últimas, Bad Religion e Offspring, e não agüentavam mais olhar para a minha cara...

Em eventos de outro tipo, alguns personagens podem sempre esperar recepção pouco calorosa: políticos, polícia, repórteres da Globo... Às vezes a bronca é pessoal, mas é comum tomar uma vaia em nome da instituição; o desaforo se dirige a pessoas jurídicas, seja lá quem for a pessoa física diante do microfone.

O sujeito à minha frente não sabia quem eu era, mas não queria me ver ali. Queria os shows de música. Ele e mais uns três ou quatro, embriagados pelo álcool, pela natureza ou a vida dos últimos anos. São do povo "de rua". “Você não é a prefeita? Então arruma um trabalho pra mim”, gritava e gesticulava um deles, como se estivesse travando uma luta de boxe com o vento. Sorri: “Eu não sou prefeita. Sou vereadora”. Ficou confuso como se tivesse levado um direto no queixo. Abaixou os braços e sorriu torto. Parecia o soldado de um episódio do Asterix (acho que é “O Escudo Arverno”), tentando gritar “Viva Vercingetórix!”.

Enfim, não liguei. OK, eles odeiam políticos e discursos. Quem há de condená-los por isso? Mas outros faziam questão da minha presença e da fala, ouviram com respeito, gostam de ser merecedores de atenção. Era o Natal Solidário, festa da população de rua que acontece todo 24 de dezembro em alguma praça pública. Em 2007, foi na Sé. Monta-se um palco, há apresentações de artistas diversos – quase todos, gente “da rua” como eles – e distribuição de lanches e brinquedos para as crianças.

A alegria simples daquelas pessoas é de cortar o coração. Momentos antes, havia se apresentado um cover do Raul Seixas (dublando). Incrível, incrível mesmo ver a quantidade de letras que o público sabia de cor. Cantavam junto, interpretavam a letra com mímica, vibravam. Sujos, maltrapilhos, desdentados, descalços, emocionados e felizes.

Se bem que muitos, muitos mesmo, não manifestam emoção nenhuma. Ficam quietos olhando.

Estava indo tudo muito bem; o rapaz da organização a toda hora agradecia “à Prefeitura de São Paulo, a Guarda Civil Metropolitana, à Polícia Militar do Estado de São Paulo”. Ano passado, tivemos problemas com a GCM; este ano, os guardas observavam tudo tranqüilos, solícitos.

Até que começou o rap.

Estava tudo tão calmo que eu já estava indo embora, deixando o pessoal curtir a festa. Só não fui para prestigiar o grupo e ver ao menos uma música. Fiquei feliz por ter ficado – o público reagiu super bem. Os mais animados pulavam, punham as mãos para cima, atentos à rima e aos movimentos dos MCs. Estava tão bacana que comecei a gravar um vídeo com minha câmera fotográfica, mas a memória não deu nem para o cheiro. Em 8 segundos, mal começada a panorâmica pela praça, não havia mais “espaço no memory stick”. Que pena.

Mal sabia eu que o “espaço” faria falta não para mostrar a paz, mas a guerra.

Antes que eu percebesse que havia alguma coisa errada, o grupo interrompeu a apresentação: “Nós vamos dar um tempo porque os ânimos ali estão agitados. Calma, gente”. No lado oposto ao que eu estava, uma pequena aglomeração. “Xi, devem estar brigando”. Não dava para ver nada, exceto o bolo de gente olhando alguma coisa.

O Papai Noel da festa – o Tião, figuraça, ex-morador de rua, autor de livro e peça de teatro – pegou o microfone e parecia um dalai lama: “Povo de rua, vem pra cá. Tumultua não. Venham aqui pra frente do palco. GCM: calma. Não precisa se exaltar. Afasta, pessoal. Calma, GCM”. Eu não enxergava nada, mas fiquei morrendo de medo de como a GCM iria reagir (e nem sabia reagir a que, porque não vi nada acontecendo!). O Tião continuava falando pausadamente, com cuidado para não insuflar ninguém. Até para a polícia ele chegou a pedir ajuda para serenar os ânimos.

Não adiantou. A cena seguinte foi aterrorizante: guardas tacando spray de pimenta na cara das pessoas e sacando os cassetetes (ainda bem que não foram os revólveres!) e dando, dando, dando com fé em quem estivesse na frente. Brandindo o cassetete como uma batuta de maestro, pra tudo quanto é lado. Logo o bolo de gente se desfez em correria – gente passando mal, vomitando, desesperada tentando respirar. E guardas correndo atrás de quem estivesse correndo também, dando cacetada nas costas, passando rasteira, chutando e batendo em gente caída.

Foi horrível. Não vi o começo da coisa, mas o que me contaram foi o seguinte: três guardas foram para cima de um cara que estava de costas para eles, dominaram, jogaram no chão e tentaram algemar e levar embora. Não disseram o que ele tinha feito. Ninguém que estava por perto viu qualquer atitude errada por parte dele. A ação foi bem violenta; a atitude deveria ter sido muito grave, e mesmo assim não se justificaria tamanha truculência.

Inevitavelmente, quem estava por perto foi tentar interferir. “Por que vocês estão levando ele? O que foi que ele fez?”. “Não te interessa. Não se mete. Cuida da sua vida”. “Como assim, não me interessa? Fala o que ele fez!”. Os GCM continuaram agredindo o cara rendido e começaram a ameaçar quem estava em volta. Um rapaz começou a fotografar a cena e um guarda foi para cima dele e ficou tentando arrancar a câmera da sua mão. Ato contínuo, usou pimenta e deu-lhe um chute na canela.

E aí foi. Correria e porrada. Fiquei com medo de começar a voar pedra, mas não vi nenhuma. É capaz que tenha tido, mas não vi. Fiquei tentando acudir uma moça que não conseguia respirar, rezando para não acontecer mais nada, quando vieram me dizer: “Os guardas estão tirando a identificação do uniforme!”. Céus, a coisa estava feia e ia piorar. (cont.)


Pós-guerra (2)

Aqui e ali, ânimos exaltados. Nos olhos de alguns guardas, homens e mulheres, ÓDIO. Impressionante. Ai de quem chegasse perto. Pedir a identificação, perguntar “cadê seu chefe, quem está no comando?” recebia, em resposta, um olhar feroz, um rosnado, uma ameaça na forma de cassetete erguido ou mão sobre o coldre do revólver. Um rapaz ao meu lado observou, com uma calma surpreendente: “Eles vão dizer que foi o rap. Começaram a confusão bem na hora do rap pra dizer que o rap é que tem culpa”.

O rap já tinha desistido... Subiu ao palco um cantor de reggae, cantando um salmo. Mas o clima ainda era horrível. Eu não conseguia entender: por que dar uma rasteira, derrubar alguém que está tentando fugir do tumulto, dar várias cacetadas e sair?

Em um canto do praça, um homem sentado no chão chorava e esfregava o braço: “Tá doendo!”. Em volta dele, uma roda de GCM, isolando-o como se fosse uma mina terrestre. Ele chorava, chorava, chorava. Pedia pelo amor de deus. Me aproximei: “Vocês não vão chamar socorro?”. Faziam sinal para que eu me afastasse, ríspidos. Se eu não fosse mulher, teria levado bordoada, certeza. “O que ele fez? O que vocês estão esperando?”. O homem gritava e um guarda aproximava bem o rosto do dele, urrando: “CALA ESSA BOCA! CALA A BOCA, CARALHO!”. E ameaçava dar com o cassetete outra vez. Em um homem sentado no chão, chorando de dor! Eu perguntava, mais calma do que costumo ficar nessas horas: “Pra que isso?”. Um guarda virava a cara, envergonhado; outros faziam sinal para me afastar e não me meter, com ar de ódio.

Acho que eles viram todos os filmes errados. Não assistiram aquelas cenas de policiais frios, inabaláveis, com equilíbrio de mestre de King Fu, lidando com desaforos, impropérios, cusparadas, como se fossem de aço. Rendendo, imobilizando, prendendo no puro cumprimento do dever, e não como se estivessem em uma briga de rua e fossem de uma das gangues rivais.

Pareciam pitbulls, ou pitboys. Valentes? Covardes. Quatro ou cinco contra um. Diante de uma pessoa exaltada, nervosa, reagiam com o dobro da exaltação e nervosismo. O dever deles não seria justamente o contrário? Protegidos, armados, fortes e treinados, como podem agir com tanta raiva, tanto sangue nos olhos?

Nem vou descrever outras cenas, outras agressões. Houve mais alguns ataques coletivos, descontrolados. Um inspetor presente, que não era superior imediato daqueles guardas mas tentava organizar as coisas ali, mal conseguia se fazer ouvir por eles. Um ou outro guarda tentava serenar os ânimos, mas a maioria – é triste dizer, mas era maioria – estava a fim de mesmo de descer o cacete.

Para concluir: uns quinze ou vinte minutos depois, finalmente levantaram o homem que chorava. E...? Torciam o braço dele para trás, com violência indescritível, para algemá-lo. CLARO que ele resistia. Chorava, gritava, IMPLORAVA, mas eles juntaram dois ou três para fazer o serviço e socá-lo para dentro de uma viatura. Felizmente, consegui que alguém me respondesse: estavam levando para o 1º. DP. Qual a acusação? Nenhuma resposta. Se quisesse, eu que fosse ao Distrito acompanhar.

Fui. O delegado e os escrivães nos receberam muito bem. De imediato, pediram para levar os feridos (eram 2) ao Pronto-Socorro. Um deles tinha um talho na cabeça; segundo os guardas, ele tentou fugir ao chegar ao DP e teve a idéia de jerico de dar com a própria cabeça, com toda força, no vidro da viatura, que quebrou. Não tentou chutar, morder ou cabecear um guarda; tentou furar a janela com a testa... Segundo uma testemunha, deram com a cabeça dele no vidro, isso sim.

No caminho do hospital, os GCM ameaçavam os rapazes; já no PS, ficavam vigiando para ver o que os feridos iam dizer aos enfermeiros. “Tomei uma pedrada”, disse o do talho. Os guardas não o desmentiram. Ele olhou bem para a moça que o atendia, que baixou os olhos, compreensiva e temerosa.

De volta ao distrito, os guardas contaram sua versão da ocorrência. Mostraram um paralelepípedo como prova do que tinha acontecido na praça. Um troço monstruoso, difícil até de levantar do chão. Talvez tivesse sido arremessado por uma catapulta... Deram queixa por incitação à violência, apologia ao crime, desacato. Disseram que tinham sido agredidos com uma chuva de pedras e caixotes, e por isso tinham reagido. Um deles esfregava o braço o tempo todo, franzia a testa e fazia bico, como se estivesse doendo muito. (Mais tarde, no IML, dava risada e dava de ombros...)

Enfim, uma tristeza, uma tragédia. Porque não foi só um caso de descontrole em um evento de rua; não foi só uma demonstração de excesso motivado por despreparo. Foi uma exibição de ódio e preconceito. (Na hora da confusão, um guarda dizia para os rappers, ainda em cima do palco: “Depois um toma um tiro, aí vem a mamãezinha chorar”; o homem do braço torcido ouviu de um guarda: “Volta pra Bahia, desgraçado”; outro guarda disse para outra pessoa: “É pra acabar com essa palhaçada de Natal”).

Quem tem esses sentimentos, essas reações, não tem a menor condição de estar na rua. Se eu tenho de estar preparada para ser xingada, que dirá um guarda? Ele tem de cumprir a lei. Se um sujeito atirou uma pedra, tem de ser detido, fichado, processado... Não apanhar de quatro ou cinco. Não se pode admitir espancamento por autoridade!

E o homem do braço jura que não fez nada, só saiu correndo pra fugir do tumulto. Por coincidência, ele aparece nos meus 8 segundos de vídeo, quietinho, sozinho, vendo o show com um ar sorridente, bem longe de onde começou a confusão. No chão da delegacia, ele chorava, chorava, chorava. “Isso é Natal?”.

No dia 24 à noite, depois de serem fichados como “autor/vítima”, eles voltaram para seus albergues. Hoje devem estar por aí, catando papelão. (Na hora em que o do braço foi levado pela viatura, veio um outro correndo atrás de mim: “Ele trabalha, doutora! Eu conheço ele lá do ferro-velho! É trabalhador, é gente de bem!”). Que Natal...

Preocupo-me seriamente com os guardas. Que sejam afastados das ruas; que será deles? Não podem lidar com gente. Não podem ter cassetete, pimenta, revólver. Para onde iriam? Se forem exonerados, que farão por aí essas pessoas? Que trabalho serve para quem tem tanto ódio? Na direção de um ônibus, jogariam o carro para cima do pedestre, como o doido que, meses atrás, passou por cima de um velhinho na Brasilândia, praticamente de propósito. Em vez de reduzir para o velhinho terminar de atravessar, acelerou. Matou.

Tem muito doido nessa cidade. São Paulo precisa de paz, de saúde mental. Antes que eu me desespere outra vez, ou me desespere da vez, lembro de Berlim. Da barbaridade da guerra, da barbaridade do muro. Passou. Ainda deve estar cheio de doido por lá (claro que está), mas a maioria vive e circula em paz. E nem faz tanto tempo assim que era tudo horror e ruína.

Em 2008, que estejamos mais próximos da Berlim de hoje e mais distantes dos escombros, trincheiras e muros de uma cidade em pé de guerra. Paz, São Paulo, paz.

Escrito por Soninha
fonte: http://blogdasoninha.folha.blog.uol.com.br
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