Por José Arbex Jr. (*)
“Guerra é guerra... É lamentável que morra tanta gente, especialmente os inocentes, mas é o preço que a sociedade deve pagar para acabar com o narcotráfico... Você tem alguma outra solução?” Recebi um número incomum de comentários semelhantes, todos em referência ao artigo “Um Carandiru por Mês”, publicado na edição de novembro, sobre a matança promovida pela polícia fluminense nos morros cariocas. Deixando de lado as mensagens de nítida inspiração fascista (do tipo: “ainda é pouco, essa gente só aprende na base da chinela”) e a lengalenga idiota de que se pretende apenas proteger os “direitos humanos dos bandidos”, as questões levantadas revelam níveis preocupantes de confusão, pânico e ódio indiscriminado a um suposto inimigo difuso, espalhado por todos os cantos e visível apenas por sua cor (embora ninguém tenha dito isso claramente). Sim, é verdade que há uma guerra em curso, e que o narcotráfico tem que ser combatido. O problema é saber quem é o inimigo e como derrotá-lo. Nada disso é tão óbvio quanto parece.
O governo e a polícia fluminense, aparentemente, já sabem a resposta. A guerra ao tráfico produziu 694 mortos nos primeiros seis meses de 2007, segundo dados orgulhosamente divulgados pelo próprio governador Sérgio Cabral e que serviram como ponto de partida para o artigo em questão. Além disso, banalizou-se a prática terrível e anticonstitucional do mandado de busca coletivo, que permite à polícia invadir qualquer casa, barraco ou construção situados na área de abrangência de uma ação policial. Isso significa que todos os que vivem em determinada região – obviamente, será sempre uma favela, um cortiço ou algo do gênero, jamais um bairro de “gente bem” – tornam-se suspeitos, pelo simples fato de ali viverem. Trata-se da criminalização definitiva da pobreza, agora sacramentada por procedimentos jurídicos. A resposta, então, está dada: combate-se o narcotráfico cercando os morros, impondo o terror às famílias pobres, espalhando a morte.
Trágica ilusão. Segundo a ONU, o narcotráfico mundial movimenta, anualmente, cerca de 1 trilhão de dólares. É um valor equiparável ao PNB brasileiro (isto é, a soma total de todos os bens e serviços produzidos pelo país ao longo de doze meses). Quando se levam em conta os negócios “paralelos” impulsionados pelas drogas – comércio de armas, contrabando de todo tipo, prostituição etc. –, a cifra atinge valores incalculáveis. Muito bem: onde está esse dinheiro? Alguém pode, em sã consciência, imaginar que ele será encontrado sob os colchões dos moradores do Complexo do Alemão carioca, ou, digamos, do Jardim Ângela, em São Paulo? Ora, é mais do que óbvio que cifras como essas circulam nos mercados especulativos, alimentam as bolsas de valores de todo o mundo, engordam ainda mais os imensamente obesos cofres dos maiores bancos, fazem a festa dos “paraísos” financeiros. O problema foi infinitamente agravado pela total desregulamentação do fluxo de capitais promovida pelo neoliberalismo, nos anos 90. O mundo dos negócios foi definitivamente transformado num imenso cassino eletrônico, bem ao gosto das máfias.
O dado complementar é o uso do narcotráfico para alimentar as “guerras sujas” promovidas pela Casa Branca e aliados mundo afora. A própria ONU reconhece, por exemplo, que no Afeganistão, tradicionalmente o maior produtor mundial de ópio, o antigo governo do Talibã, derrubado pelos Estados Unidos, em 2001, havia erradicado a cultura da papoula (matéria-prima para a produção da droga); hoje, quando o país é governado por aliados de Tio Sam, a papoula floresce mais do que nunca, em todos os sentidos. O dinheiro obtido com a venda do ópio financia as operações militares dos “senhores da guerra” e a compra de armas estadunidenses. Na Colômbia, o presidente Uribe, fortemente apoiado pela Casa Branca, vem de uma família com conhecidos vínculos com o narcotráfico. Seriam necessárias páginas e mais páginas, aliás, para descrever as relações da CIA com as máfias narcotraficantes na América Latina e no Caribe.
Há muitíssimos mais interesses envolvidos no mundo do tráfico do que o sugerido pela mera leitura diária dos jornais, incluindo a participação de cidadãos acima de qualquer suspeita, gente cuja casa jamais será vasculhada pela policia. É muito mais simples, mais seguro e mais conveniente deixar todas essas complicações de lado e apontar o fuzil e o ódio para a favela. Adolf entendeu isso muito bem nos anos 30, quando “explicou” com uma fórmula bem clara e direta o caos alemão: a culpa é dos judeus, dos comunistas, dos socialistas, dos ciganos. Deu no que deu. Hoje, a culpa do caos no Rio é dos favelados, com todas as conotações racistas que isso implica. Analogamente, em escala internacional, os responsáveis pelo clima de terror que existe no mundo são os árabes, os islâmicos, os estrangeiros pobres, a periferia do sistema capitalista. Essa pobreza nojenta que torna as ruas feias e a nossa existência um drama. Em Bogotá, capital hoje citada como exemplo de “urbanização” bem-sucedida, foram criadas empresas de “saneamento” cujo objetivo era livrar o centro da cidade dos desechables, o lixo humano descartável.
Querem mesmo acabar com o narcotráfico? Pois bem: comecem a investigação pelos grandes bancos, por aqueles que lucram com o tráfico de armas, pelas corporações que faturam com as guerras, pelos dignitários, juízes, políticos e policiais que ganham horrores com o jogo de extorsões e subornos. Enquanto toda essa gente estiver livre, haverá narcotráfico. A menos que a comercialização das drogas ilegais seja legalizada e pesadamente taxada, como hoje se faz com o tabaco e o álcool. As coisas ficariam muito mais transparentes e controláveis. Mas... adivinhe quem são os maiores adversários da legalização...
(*) José Arbex Jr. é jornalista e autor de O Jornalismo Canalha e Showrnalismo – a Notícia como Espetáculo, ambos pela Editora Casa Amarela. Este artigo foi publicado na edição de janeiro de 2008 da revista Caros Amigos e foi gentilmente cedido para o fazendomedia.com.
fonte: http://www.fazendomedia.com
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