07/02/2008 17:27:44
Miguel NicolelisPara a maioria dos brasileiros, principalmente aqueles que vivem no Sul e Sudeste, qualquer menção ao sertão nordestino imediatamente evoca tradicionais imagens de destituição, miséria, abandono e atraso. Invariavelmente, essas amargas lembranças servem apenas para reforçar a opinião de que uma realidade tão implacável e inóspita jamais se renderá a qualquer política pública ou iniciativa privada que vise ao desenvolvimento da região. Assim, dentro desse estereótipo nacional, nada é capaz de prosperar diante do sol escaldante, o solo seco e os desolados jardins de cactos que dominam a paisagem da Caatinga.
Essa visão fatalista ignora que o sertão nordestino há séculos serve de palco para o desenrolar de um grande épico de sobrevivência, construído dia a dia pela ingenuidade natural e obstinação de todas as formas de vida que lá habitam. Formada por uma vegetação altamente adaptada à falta crônica de água, ornada por uma flora típica e própria, a Caatinga há muito deixou de ser considerada, ao menos em termos botânicos, como uma simples degeneração da Mata Atlântica. Na realidade, trata-se de um dos biomas mais especializados do mundo, parte integral e única do extraordinário patrimônio natural brasileiro.
Todavia, diferentemente da floresta amazônica, do Pantanal, e até mesmo do Cerrado, a Caatinga ainda não encontrou seu espaço próprio na consciência nacional, que vira-e-mexe prefere rejeitá-la, como se fosse uma filha a quem se nega paternidade, nome e pensão.
O fascínio que atrai milhares de brasileiros a visitar as inúmeras e exuberantes praias do Nordeste esvai-se em segundos quando o sertão é mencionado como uma nova provável fronteira de desenvolvimento que começa a se desenhar no horizonte futuro do País. Improvável, respondem de imediato os mais gentis e cautelosos. Impossível, bradam os chamados realistas. Inimaginável, decretam os fatalistas. O que pode crescer e prosperar nesses infindáveis e desolados jardins de cactos, perguntam todos em coro?
Durante uma viagem de alguns dias por muitos recantos extraordinários do interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte, encontrei a resposta para esta pergunta. E ela não poderia ser mais singela e simples. São flores, muitas flores, que brotam desses jardins de cactos, outrora abandonados pelo ocaso predito, para colorir a paisagem desse sertão com matizes de esperança e sonho.
E é a partir dessas ainda frágeis florescências, tão inesperadas quanto belas, que desabrocha a concreta sensação, para quem o visita, de que o destino do Nordeste brasileiro, dado como natimorto inviável, pode se transformar numa inesperada fronteira de desenvolvimento e progresso, com repercussões significativas para todo o Brasil e o mundo. Em bom português, para quem tem olhos e quer ver, o Nordeste pode e tem tudo para se transformar na nossa Califórnia.
Os primeiros sinais do que está por vir podem ser obtidos no interior paraibano, nas primeiras plantações experimentais do pinhão-manso (Jatropha curcas), uma planta oleaginosa que cresce nos tabuleiros do sertão, muito bem adaptada à falta d’água crônica. Num futuro próximo, essa e outras culturas, valendo-se do casamento da moderna biotecnologia com uma nova agricultura do Semi-Árido, podem transformar as terras do sertão na maior usina de biocombustível do mundo. E, no processo, revolucionar o desenvolvimento econômico e social da região.
Exemplos como esse proliferam pelo sertão. Somado ao acesso à tecnologia, tem provocado mudanças no cotidiano dos habitantes. É como conta Gustavo, estudante de um vilarejo chamado Residência, no Rio Grande do Norte. Primeiro, diz ele, chegou a água, depois a eletricidade. Daí chegaram as antenas parabólicas e a televisão. Por isso, do Brasil ele sabe tudo e para tudo tem uma opinião. Dos problemas do tráfego aéreo à criminalidade das grandes cidades, Gustavo está a par da agenda nacional. Para o menino, o sertão está muito bom e só tende a melhorar. Assentindo em silêncio, procurei gravar cada detalhe daquela florada humana desabrochando, ali, no lugar onde poucos imaginaram que cacto também desse flor.
e-mail: nicoleli@neuro.duke.edu
Telescópio
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