terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O Monroe e o Garrincha - por José Luís Fiori - fonte:

O Monroe e o Garrincha

A América Latina está sendo obrigada a mudar sua inserção internacional, e deixar para trás a sua longa “adolescência assistida”, dentro da geopolítica e da economia do sistema mundial. Nesta nova situação, vale refletir sobre uma velha anedota futebolística.

Em agosto de 1823, o ministro de relações exteriores da Inglaterra, George Canning, propôs ao embaixador americano em Londres, Richard Rush, uma declaração conjunta, contra qualquer “intervenção externa”, na América Latina. O presidente James Monroe, apoiado no seu secretário de estado, John Quincy Adams, declinou o convite inglês. Mas três meses depois, o próprio Monroe propôs ao Congresso Americano, uma doutrina estratégica nacional quase idêntica à da proposta inglesa. Foi assim que nasceu a “Doutrina Monroe”, no dia 2 de dezembro de 1823. Como era de se esperar, os europeus consideraram a proposta de Monroe impertinente e sem importância, partindo de um estado que ainda era irrelevante no contexto internacional. E tinham razão: basta registrar que os Estados Unidos só reconheceram as primeiras independências latino-americanas, depois de receber o aval da Inglaterra, França e Rússia. E mesmo depois do discurso de Monroe, se recusaram a atender o pedido de intervenção dos governos independentes da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México.

Por isto, muito cedo, os europeus e os próprios latino-americanos compreenderam que a Doutrina Monroe havia sido concebida, e seria sustentada durante quase todo o século XIX, pela força da Marinha e dos capitais ingleses. E só passou de fato para as mãos norte-americanas, no início do século XX. Até lá, a América Latina foi uma espécie de “protetorado” inglês, e os Estados Unidos restringiram sua ação militar ao seu território mais próximo, e mesmo assim, quando contaram com o apoio ou com a neutralidade inglesa. Pelo menos até a Guerra Hispano-Americana, em 1898, quando os Estados Unidos conquistaram Cuba e as Filipinas, logo antes do presidente republicano, Theodore Roosevelt, propor uma mudança essencial na Doutrina Monroe, em dezembro de 1904.

O “Corolário Roosevelt da Doutrina Monroe”, ficou conhecido por sua defesa do direito de intervenção dos Estados Unidos nos estados americanos “incapazes” de manter sua ordem interna, e de cumprir com seus compromissos financeiros internacionais. Já não se tratava, portanto, de uma estratégia defesa contra inimigos externos, como se pode ver, numa carta enviada por Roosevelt ao seu secretário de estado, em maio de 1904: “Qualquer país ou povo que se comporte bem, pode contar com nossa amizade cordial. Se a nação demonstra que ela sabe agir com razoável eficiência e decência nos assuntos sociais e políticos, se ela sabe manter a ordem e paga suas dívidas, ela não precisa ter medo da interferência dos Estados Unidos. Um mau comportamento crônico, ou uma impotência que resulte no afrouxamento dos laços de civilidade social podem requerer, na América ou em qualquer outro lugar do mundo, a intervenção de alguma nação civilizada, e no caso do Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe, pode forçar os Estados Unidos a exercer um poder policial internacional.” (Pratt, 1955: 417).

Entre 1900 e 1914, a nova doutrina legitimou a intervenção externa dos Estados Unidos e a criação de uma série de protetorados militares e financeiros, dos Estados Unidos, na República Dominicana, Haiti, Nicarágua, Panamá e Cuba. Na sua nova condição, estes países mantinham sua administração interna, mas não controlavam sua política externa, nem sua política econômica. E os Estados Unidos mantinham o direito de “reentrada” em caso de desordens sociais ou políticas. Foi neste momento, aliás, que os Estados Unidos assumiram , pela primeira vez, o papel de polícia internacional, transformando o Caribe num “mar interior”.

Alguns anos depois, em 1914, no início da administração de Woodrow Wilson, o novo presidente democrata agregou um novo item à política latino-americana dos Estados Unidos, com uma simples frase de efeito, dita para um interlocutor inglês: “Eu vou ensinar estas republicas sul-americanas a eleger homens bons” (idem, p:423). Com este objetivo, Woodrow Wilson completou o desenho da estratégia continental dos Estados Unidos no século XX, baseada em três direitos de intervenção – auto-atribuídos - em qualquer território do “hemisfério ocidental”: i) em caso de “ameaça externa”; ii) em caso de “desordem econômica”; e, iii) em caso de “ameaça à boa democracia”. No período da Guerra Fria, os Estados Unidos patrocinaram em todo continente, guerras civis, intervenções militares e regimes ditatoriais contra um suposto “inimigo externo”. Depois do fim da Guerra Fria, patrocinaram nos mesmos países, intervenções financeiras e reformas econômicas neoliberais, para combater uma suposta “desordem econômica interna” e garantir o cumprimento dos compromissos financeiros internacionais da América Latina. E, finalmente, a partir de 2001, os Estados Unidos incentivam forças e opinião publica, contra os governos “populistas autoritários” latino-americanos que seriam –para eles - uma ameaça à democracia.

Agora bem: as eleições presidenciais de 2008, já fazem parte de um processo de realinhamento da estratégia internacional dos Estados Unidos. Este processo deverá tomar alguns anos, mas é muito pouco provável que os Estados Unidos abram mão dos três “direitos de intervenção” que orientaram sua política hemisférica, durante o século XX. Assim mesmo, neste início do século XXI, a “globalização” do sistema inter-estatal, e a acelerada expansão política-econômica da Ásia, criaram uma pressão competitiva global que já envolve quase todos os “estados-economias nacionais” do mundo. Por isto, a América Latina está sendo obrigada a mudar sua inserção internacional, e deixar para trás a sua longa “adolescência assistida”, dentro da geopolítica e da economia do sistema mundial. Nesta nova situação, vale refletir sobre uma velha anedota futebolística, e seu ensinamento universal: a célebre indagação de Garrincha, após ouvir as orientações do técnico Vicente Feola, antes do jogo com a União Soviética, na Copa de 1958, na Suécia: "o senhor já combinou com o adversário para deixar a gente fazer tudo isso?" Garrincha sabia que no futebol não há como “combinar com o adversário”. Da mesma forma que na luta pelo poder e pela riqueza internacionais, onde só existe um jeito de ganhar o “jogo”: antecipando-se às intenções e impondo sua própria estratégia, aos concorrentes e adversários.


José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br


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