por Rodrigo Aranha
“Como o perigo continua, nós temos que assegurar aos nossos funcionários da inteligência todas as ferramentas que eles precisem para conter os terroristas”, disse George W. Bush, presidente estadunidense, em seu programa semanal de rádio no dia 8 de março. Explicou o veto sobre a lei do Congresso americano onde se proibia a utilização do afogamento, e outras formas de tortura, por parte da CIA (Agência de Inteligência Americana) em seus interrogatórios. Essa técnica consiste em provocar afogamentos sucessivos no prisioneiro, diminuindo a presença de oxigênio nos pulmões e no cérebro. A respiração fica difícil, o sofrimento psicológico aumenta com vistas ao horror e a perda de controle. A conseqüência pode ser a morte.
O tema tortura foi debatido no final de fevereiro na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, no primeiro Seminário de Tortura Internacional com a participação de vários pesquisadores. Os palestrantes falaram das torturas que não fazem parte de um passado de ditaduras ou regimes autoritários e sim de governos que se auto-proclamam democráticos, como dos Estados Unidos.
Na comunidade de Calabetão, periferia baiana, a casa de Auriana Santana, líder dos sem-teto de Salvador, foi invadida por policiais militares. A tortura recaiu sobre seus dois filhos, Paulo Rodrigo e a filha menor de 13 anos. Com socos, pontapés, asfixia com saco plástico e óleo fervendo sobre a cabeça do jovem, os policiais buscavam armas e drogas. Enquanto reviravam a casa inteira a adolescente foi espancada nas costas e sufocada com o saco plástico frente aos olhos desesperados do irmão. Em agosto de 2007, dois meses após a denúncia de tortura feita pela família Santana, a residência foi invadida novamente. Auriana, seu filho e companheiro são obrigados a deitar no chão e são executados. O Fórum Comunitário de Combate à Violência indica que a maioria das vítimas são negros, pobres, com escolaridade baixa e moradores da periferia. Entre 1998 e 2004, das 6.308 pessoas assassinadas em Salvador, 5.852 eram negros ou mulatos.
Em todas as intervenções alguns pontos comuns como a legitimação do uso da tortura. Impensável, ela continua ativa, sutil ao divulgar-se em opiniões por diferentes meios de comunicação e pessoas de prestígio, políticos em sua maioria, como discurso de que frente a situações drásticas, são necessários métodos drásticos. Também se utiliza a criação de uma imagem de um inimigo supostamente implacável ao qual não é fácil vencer, portanto utilizar recursos legais e ilegais para derrotá-lo é necessário.
Coincidentemente muitos convidados vieram dos Estados Unidos que, após os atentados do 11 de setembro de 2001, impôs ao mundo um regime autoritário velado sob a hégide da democracia.
“A tortura é parte do sistema, protegida pelo silêncio e pela falta de ação do estado. Não é um desvio, é sistemático. Apóia-se em vários atores. O executante, mas também os facilitadores: médicos, guardas, treinadores de cachorros, entre outros. E o mais importante: a cumplicidade, sem cumplicidade não há ação nem impunidade”, explica Marta Huggins, professora de Relações Humanas na Universidade de Talune, Nova Orleans, autora de artigos acadêmicos sobre crime, controle social e direitos humanos no Brasil.
Esporte aquático?
Há pouco tempo o secretário de Justiça dos Estados Unidos, Michael Mukasey, negou iniciar uma investigação utilizando o afogamento nos interrogatórios realizados pela CIA a suspeitos dos atentados do 11 de setembro. Os funcionários da agência norte-americana inventam nomes menos brutais como “waterbording”, que lembra nome de esporte aquático.
Também, o vice-presidente Dick Cheney, um juiz da Corte Suprema, altos funcionários do Departamento de Justiça e o diretor da CIA, discutiram sobre a legalidade da tortura; quanta dor ou quanto dano pode-se causar a um ser humano para conseguir informações. O jogo de palavras se resumiria assim: "como torturar dentro da lei? E até onde posso exercer pressão sobre o interrogado sem considerar-se tortura?". Steven Bradbury, funcionário do Departamento de Justiça norte-americano encarregado de determinar o que é ou não legal, disse ao Comitê Judicial da Câmara que “algo pode ser bastante aflitivo ou incômodo, ainda provocando susto, mas se não consta dor física e se não durar muito tempo poderia não consistir sofrimento físico severo”.
A “caravana da tortura” foi atrás, entre os dias 23 de abril e 7 maio de 2007, do assassino de dois policiais nas cidades maranhenses de Santa Helena e Turilândia. Foram torturadas nada menos que 25 pessoas por supostos vínculos com Paulo Silva o principal suspeito. A promotoria, junto com organismos de direitos humanos, investiga 14 oficiais do Grupo de Operações Especiais envolvidos nesta caravana do terror. Em 2007, no sul do país, um grupo de 150 sem-terra foi cercado por 200 policiais e vigiados por um helicóptero. As terras ocupadas eram do Complexo da Forquilha. Vinte cinco desses trabalhadores sofreram espancamentos como socos, pauladas, ripadas, chutes, afogamentos e sufocamentos com sacos plásticos.
A sociedade norte-americana está envolvida em discussões sobre a tortura. A psicóloga social e membro da Internacional Intelligence Ethics Association, Jean Maria Arrigo, conta sobre este debate: “As supostas novas formas de interrogação ou de torturas que as elites militares estão desenvolvendo são de tirar o sono, ficar de pé por várias horas, expor a pessoa a altas temperaturas. Até o ex-prefeito de Nova Yorque, Rudy Giuliani, não vê problema nisso, porque ele se priva do sono quando está em campanha.”
A Bomba Relógio
Durante o seminário os palestrantes norte-americanos citaram a teoria da bomba-relógio. Uma metáfora dos filmes ou seriados de ação – como o 24 Horas – onde uma grande quantidade de pessoas corre perigo, um relógio faz sua contagem regressiva sobre uma bomba que matará numerosas vidas. Ou seja, os governantes podem, dentro dessa teoria, usar qualquer recurso para saber onde e como desativar o explosivo. Os “heróis” torturam os bandidos (ou “terroristas”) em prol dessa informação que permitirá salvar vidas. Essa é a questão que coloca o povo americano: a defesa de um bem maior. Quanto vale um terrorista frente a centenas de vidas inocentes? Coloca-se, deste modo, a sociedade num constante estado de emergência, onde sempre existirá um perigo iminente ao qual se deve combater. O próprio governo norte-americano propaga, o medo se levanta como protetor dando ao povo um sentimento de segurança desvirtuado: “estamos prontos até as últimas conseqüências.”
Yuval Ginbar, da organização Anistia Internacional disse: “o impulso por parte dos Estados Unidos com a criação de Guantánamo como centro de tortura deu legitimação para essa prática.”
Após um furto na cidade de Caicó no Estado do Rio Grande do Norte, Henrique Morais de Medeiros foi preso por policiais militares e levado para a Delegacia de Mossoró, norte do estado. Entregue a policiais civis, recebeu socos na cabeça e no estômago. Foi asfixiado com uma bolsa de plástico para confessar outros roubos naquela cidade. Na volta a Caicó dois delegados desceram do veículo, e depois de espancá-lo, um deles apontou uma metralhadora ameaçando matá-lo na beira da estrada caso não confessasse sobre os assaltos cometidos. A vítima ficou com problemas renais depois da maratona de torturas.
O Brasil e a tortura
Fernando Salla, membro do Núcleo contra a Tortura, da USP, disse que o evento foi pensado dentro de um enfoque acadêmico, para incentivar a pesquisa. Segundo Salla, a “produção teórica é muito tímida na área”. No entanto, foi inevitável não tocar no assunto da questão nacional e os desafios para eliminar a tortura e a indiferença da sociedade.
“Não acredito que exista ignorância, e sim, vontade política. Os instrumentos existem para combater a tortura, o que não existe é um empenho político ou de força política. O governo nacional fica de saia justa pelos relatórios que fazem diferentes organismos”, diz Fernando Salla. Neste sentido, a saia apertou para o ministro Paulo Vannuchi da Secretaria Especial dos Direito Humanos, em Genebra, na reunião da ONU em março deste ano. No encontro, Vannuchi teve que reconhecer que o informe feito pelas Nações Unidas era “justo e preciso”, sobre a violação dos direitos humanos no Brasil: tortura policial, racismo, corrupção no judiciário, entre outros.
Herança Maldita
As novas democracias da América Latina ainda carregam, depois de 30 anos, velhas práticas das ditaduras militares que assolaram o continente na década dos 70. Práticas que estão imersas nos aparatos repressivos dos Estados, uma herança que os militares latino-americanos deixaram e que pesam até hoje.
Doutora em História Social pela USP e mestre pela Sorbonne, Paris, Mariana Joffily, realizou seu doutorado sobre os interrogatórios feitos pela Operação Bandeirantes (grupo paramilitar) que depois se transformou no Destacamento de Operações e informações de São Paulo, durante a ditadura militar entre 1969 e 1985. “Ainda faltam estudos sobre essa matéria, mas a ditadura foi o ponto alto de uma história de longa tradição do uso da tortura no país. Ela já foi usada no período Vargas, pelo Estado Novo. Os militares deixaram uma mentalidade que se expressa na doutrina de Segurança Nacional que trata a questão de um conflito interno como uma guerra interna”, analisa Joffily.
Hercília Freitas de Oliveira foi detida por policiais militares às 21 horas em Santa Cruz, cidade potiguar, e levada à delegacia. Acusada de furto foi torturada com chutes, socos e “telefone” (batida com ambas as mãos sobre as orelhas). Para não serem reconhecidos por Hercília, seus torturadores colocaram-lhe um saco preto na cabeça. Ao mesmo tempo, um policial militar engatilhava sua arma simulando um fuzilamento caso não assinasse o auto de prisão em flagrante. A mulher se negou a assinar o documento. Como castigo ficou trancada numa cela três dias sem receber qualquer tipo de alimento. Sem “aceitar seu delito”, delegado e subordinados com uma corda suspenderam Hercília pelas pernas. De cabeça para abaixo os policiais colocaram um recipiente com água em seu nariz para impedir que respira-se. Queriam a confissão a qualquer custo.
Outro dos grandes pesos deixados pela ditadura foi a Polícia Militar e seu Código Penal Militar onde não está tipificada a tortura como crime. “Os julgamentos das polícias militares são feitos por tribunais militares. Tira-se da sociedade civil uma discussão, uma possível transparência da punição colocando ela numa esfera privada das forças armadas”, diz Joffily.
Confessar ou sofrer
De 2001 a 2003 funcionou o 0800 do SOS tortura criado pelo Governo Federal. Recebeu, além de outros casos de abusos, mais de duas mil denúncias. Por inexplicáveis razões de orçamento o governo federal deixou fora de serviço essa importante ferramenta.
A constituição de 1988 consagrou tribunais estaduais dando um foro especial que garante os crimes perpetrados por membros da corporação militar. Além disso, os delitos são investigados pelas mesmas polícias militares.
A maioria das denúncias de torturas se localizam no interior, o que derruba o mito da pacífica índole das polícias do interior. Os policiais civis, militares e funcionários de prisões são os principais executores de torturas.
Érica Monwiere dos Santos, então com 16 anos, estudante e oriunda da mesma cidade de Caicó, recebe a “visita” em casa de três policiais militares à paisana. Disseram à mãe que levariam a filha para um depoimento até a delegacia. No interrogatório os policiais tentavam que a garota assumisse a autoria do assassinato de um taxista. No entanto, quando a menina negava as acusações recebeu fortes puxões de orelhas e “telefones” se intercalavam com as perguntas dos torturadores. Teve os cabelos puxados repetidas vezes enquanto pisavam com botas os seus pés. Para livrar-se do tormento a adolescente resolveu confirmar todas as imputações feitas pelos PM.
Metade das torturas denunciadas foram realizadas nas delegacias de polícia. Outro dado que confirma a herança da ditadura militar. É o lugar institucionalizado que permite a "carta branca" dos torturadores.
Outros estudos feitos por organismos de direitos humanos mostram Minas Gerais, São Paulo, Pará, Bahia, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco como lugares de forte incidência de violência de ações de extermínio e tortura.
As histórias relatadas se repetem pelo Brasil em delegacias e presídios demonstrando que estamos longe de um país igualitário e justo.
Rodrigo Aranha é jornalista.
Fonte: Revista Caros Amigos
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