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Nos dias de hoje, em dois países distantes, dois reis são indiferentes perante o sofrimento de seus súditos. Um reino se encontra na Europa e o outro se situa no sul do continente africano, entre a África do Sul e o Moçambique. Ambos são minúsculos.
por Marta Fantini*
Durante a sua viagem rumo ao continente africano, Bento XVI não perdeu a oportunidade de alimentar a polêmica. Em sinal de protesto contra a sua afirmação, segundo a qual “a distribuição de preservativos aumenta o problema do Aids”, a Federação do Partido Comunista Francês organizou, no dia 22 de março, na praça João Paulo II, situada em frente à Igreja Notre Dame de Paris, uma distribuição gratuita de preservativos. Membros da extrema direita, cantando hinos em latim, tentaram impedir a distribuição com violência. Resultado: um ferido e 11 detidos pela polícia.
Mesmo se as promessas de salvação contidas nas “sagradas escrituras” parecem inofensivas como um conto de fadas, a História das Religiões está maculada de sangue . Os fatos atuais não têm nada de mágico ou prometedor, e estão em total desrespeito ao Artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”
Nos dias de hoje, em dois países distantes, dois reis são indiferentes perante o sofrimento de seus súditos. Um reino se encontra na Europa e o outro se situa no sul do continente africano, entre a África do Sul e Moçambique. Ambos são minúsculos. O reino situado no solo europeu é o menor do mundo, com 0,44 km² e uma população de 824 habitantes. Em comparação, o reino do país africano é bem maior, com uma superfície de 17.363 km² para uma população de 1.128.814 habitantes (Wilkipédia - 2008).
A riqueza econômica de um deles provém do turismo, publicação de selos, moedas de coleção, revistas e livros; investimento mobiliário e imobiliário e remessas provindas do exterior. O outro subsiste da exportação de minério de ferro, caolinita, madeira e açúcar, cujo volume não é suficiente para equilibrar a balança comercial. O menor reino europeu emprega 2.600 pessoas e, no menor reino africano, 80% da mão de obra se encontra no setor primário, com um nível de desemprego que atinge 35% da população ativa. Enquanto um reino é habitado por pessoas que não procriam, o outro possui a maior taxa de mortalidade infantil do mundo. Num reino as pessoas morrem, geralmente, de velhice, no outro, dificilmente passam dos 35 anos, ainda o pior índice mundial.
Um rei é eleito por um grupo restrito, o outro sucede «naturalmente» ao pai. Um rei é velho, o outro é jovem. Um tem uma vida sexual secreta, o outro tem 17 mulheres e o direito de escolher, todos os anos, durante a festa da juventude, uma nova esposa virgem, de 18 anos. No entanto, estes dois reis têm alguns pontos em comum: ambos vivem em palácios dourados, distantes e protegidos da realidade; ambos possuem poderes absolutos - não há meios de destituí-los - e são negligentes diante da epidemia que dizima seus súditos: a Aids.
Antes da difusão da excelente reportagem de Emmanuel Ostian e Gilles Jacquier para o programa “Enviado Especial” (França 2, 19/03/2009 ), poucos franceses conheciam a existência da Swazilandia, onde metade da população adulta sofre de Aids. Este país enterra mil mortos por semana, uma média de 2,3 funerais por dia; 40% das gestantes estão contaminadas e não há um único orfanato público, para abrigar 100 mil orfãos, ou seja, 10% da população. Se a progressão da doença continuar neste ritmo, até 2025, a população pobre será exterminada.
18% do PIB da Swazilandia é empregado nas despesas do monarca Mswati III e somente 8% é investido no setor da Saúde. Não existe política, campanha informativa, testes anti-HIV ou qualquer outra medida de utilidade pública para combater o flagelo. A poligamia é praticada por 10% da população, mas este costume ancestral não é o responsável direto pela epidemia de Aids. O tabu e a religião são fatores agravantes.
Tabu porque ninguém, no país, pronuncia a palavra Aids. Em caso de morte, diz-se que a pessoa faleceu de gripe, de pneumonia ou de qualquer outra doença. Nem nos anúncios necrológicos, publicados nos jornais, a doença é mencionada. Tabu porque a mulher ainda é o demônio que tenta o homem através de suas danças provocadoras. Tabu porque se acredita que tendo relações sexuais com virgens ou com crianças a pessoa será curada.
A Aids também pode ser curada através da fé que, em Swazilandia, é o segredo do sucesso. Uma vez instalado no espírito humano, o Evangelho age como remédio e como fonte de riqueza. Para aqueles que crêem na palavra de deus, nada é impossível. A reportagem apresenta o exemplo de um antigo vendedor de antenas parabólicas que se converteu em pastor. Dos 8 mil fiéis da sua igreja, metade estão contaminados pelo vírus do Aids. O ritual, por ele ministrado, parece um exercício de auto-sugestão coletivo durante o qual os presentes repetem, incansavelmente, a expressão «eu estou curado». Após a cerimônia, alguns fiéis chegam a doar até 150 euros para o «banco do paraíso». Mswati III, “o rei do apocalipse”, que reina num país sem partido político, faz testes de HIV regularmente. Para a população, ele lega a resignação e a cura milagrosa prognosticada pelas igrejas evangélicas.
Além da Aids, como lutar contra esta outra «praga» que começou por invadir os continentes americanos e que se instala, sem resistência, igualmente na África subsaariana? Ao menos, as principais igrejas cristãs estão organizadas em torno de uma hierarquia visível, o que facilita a designação, a crítica e a condenação de seus dirigentes. Mas, infelizmente, a Igreja Católica, a mais potente e a mais influente entre elas, não coopera no combate contra a Aids. Ao contrário, ela reafirma a superioridade da “lei divina” sobre a lei humana, a eficácia dos dogmas morais em relação às soluções médicas. Como se não bastasse o levamento da excomunhão dos bispos negacionistas e o caso do aborto terapêutico do Recife, “o rei dos católicos”, durante o vôo com destino aos Camarões, ao declarar que a “distribuição de preservativos aumenta o problema do Aids”, provocou, mais uma vez, a indignação geral, sobretudo daqueles que, há mais de uma geração, lutam contra a Aids.
A França, que investe no combate contra esta doença, no território africano, não podia deixar de transformar em escândalo o último anúncio de Bento XVI que, aliás, coincidiu com os preparativos do «Sidaction» - «Ação contra a Aids» , uma campanha anual, na mídia, com o objetivo de arrecadar fundos para a pesquisa. Desde o dia 17 de março, a imprensa francesa tem alimentado a polêmica. E não é para menos. A ministra da Habitação Social, Christine Boutin, conhecida pela sua homofobia, por sua postura anti-aborto e por sua fé na Santa Igreja, veio ao socorro do papa, afirmando que não deve ser «gostoso» fazer amor com preservativo. Por sua vez, o bispo do Cap, Monsenhor Jean-Michel Di Falco, porta-voz da Conferência dos Bispos da França, justificou: “a distribuição de preservativos é perigosa, pois os africanos utilizam várias vezes o mesmo ou repassam entre eles os já utilizados”.
Mais dramático e alarmante que estas observações infundadas, são os dados concretos que provam a distância entre a visão moralista de Bento XVI e a realidade. Estima-se que, no continente africano, em 25 anos, mais de 22 milhões de pessoas morreram de Aids e outras 22 milhões são portadoras do vírus; por ano, mais de 2,5 milhões de novos casos são declarados, dos quais 50% de mulheres e 40% de jovens e somente 2% dos doentes se beneficiam de tratamentos retrovirais.
Durante a celebração da missa, em Luanda, no dia 22 de março, o papa pediu a reconciliação, o fim da corrupção e a paz na África. Hipocrisia? A Igreja nunca excomungou os eclesiásticos implicados no genocídio de Ruanda, os dirigentes corruptos, os ditadores responsáveis pela miséria do povo africano. Porque o “monarca dos católicos” insiste em se implicar na privacidade da alcova e na contracepção de seus fiéis, sem incomodar os que cometem crimes contra a Humanidade ? Será que a Igreja, reafirmando a sua posição conservadora e reacionária, está realmente no bom caminho para manter ou conquistar novos fiéis? O jornal «Le Monde», de 20/03, publicou o resultado de uma pesquisa de opinião, realizada pelo instituto CSA, revelando que 57% dos franceses e 55% dos católicos são contra a atitude de Bento XVI. Somente os praticantes lhe atribuem uma imagem positiva.
Guy Gilbert, o padre dos motoqueiros, voz dissonante da hierarquia francesa, preocupa-se com a irresponsabilidade da Igreja. Segundo ele, “a declaração de Bento XVI é inoportuna, principalmente em se tratando de casos de vida e de morte. O uso do preservativo não é suficiente para a impedir a propagação da doença, mas é uma prevenção necessária. Além disso, porque proibir a sexualidade se ela é o prazer mais barato e acessível dos pobres?”
Os guerreiros da jihad islamista também acreditam que o fim do sofrimento se encontra no reino de deus. Tornam-se kamizakes com a esperança de encontrar, no paraíso, as 72 virgens que lhe foram prometidas. O regime dos aiatolás destituiu a monarquia, no Irã, e instaurou a intolerância baseada na Sharia: a homossexualidade é condenada à forca e as mulheres adúlteras à lapidação. Na prática, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “a escritura laica”, parece tão irreal quanto as estórias da carochinha.
*Marta Fantini é produtora e apresentadora do programa “Le Brésil en Noir & Blanc”, da Radio Campus Bordeaux (www.bordeaux.radio-campus.org)
Fonte: Agência Carta Maior
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