quinta-feira, 26 de março de 2009

Crônica de uma censura anunciada

::



O diretor da TV Câmara afirma retirar do ar um programa em que Gilmar Mendes foi criticado não é censura, é só uma tentativa de 'ouvir o outro lado'. Direito de resposta em um programa de debates?

Em entrevista concedida ao portal Comunique-se, o diretor da TV Câmara, Manuel Roberto Seabra, afirmou que de fato assessores do ministro Gilmar Mendes reclamaram da edição do programa de debates Comitê de Imprensa gravada em 11 de março, da qual participou Leandro Fortes, repórter de CartaCapital, mas nega ter existido censura ou ataque à “liberdade de expressão dos participantes” na decisão de retirar o conteúdo do programa do site da emissora. Seabra fez um contorcionismo retórico para tentar explicar o inexplicável. Argumentou que o programa de debates havia sido retirado do ar para que fosse dado direito de resposta para o presidente do STF. E afirmou, de forma inverídica, que houve “ataques pessoais” durante o debate.

Abaixo, alguns trechos da entrevista concedida por Seabra:

“A gente recebeu muitas reclamações sobre a matéria. Ela teria sido ofensiva e saía do tema. Houve uma tentativa de responder a isso, ouvindo as partes atingidas: o ministro Gilmar e um representante da CPI dos grampos. A idéia era inserir isso no programa, como um direito de resposta. Os assessores deles ligaram e reclamaram. Tentamos entrevistar o ministro Gilmar e o representante da CPI, mas como isso não se consumou, resolvemos voltar com o link no ar”

“Só com jornalista acontece isso. Parece que a gente não obedece o que a gente ensina. O episódio chegou a nos envergonhar por não termos o outro lado, mas essa não é a proposta do programa. Não é um programa para acusar ninguém, é para debater a mídia”

A seguir, leia a resposta de Leandro Fortes às afirmações de Seabra:

Deixa ver se eu entendi. O diretor da TV Câmara, Manuel Roberto Seabra, em entrevista ao site Comunique-se, afirma que “assessores” do ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, reclamaram do conteúdo do programa Comitê de Imprensa, do qual participei como convidado, para falar das investigações contra o delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal, com base em uma reportagem da revista Veja. Ele afirma ter recebido “muitas reclamações” (dos assessores de Gilmar Mendes?) sobre a “matéria”. Era um programa de debates. Eu não entendo muito de televisão, mas sei diferenciar um programa de debate de uma matéria. Mas vamos adiante, porque a coisa ainda vai desandar mais.

A “matéria”, segundo Seabra, “teria sido ofensiva” ao ministro Gilmar Mendes e, mais grave ainda, “saía do tema”. Primeiro, eu gostaria de saber com que autoridade o diretor da TV Câmara, funcionário de uma emissora pública, paga pelo contribuinte, ordena a retirada do ar de um programa de debate por que o conteúdo das falas, de inteira responsabilidade de quem as pronuncia, “teria” sido ofensivo a quem quer que seja. Que diabos é isso? Um roteiro do mundo bizarro ou um conto de Lewis Caroll? Ainda que eu tivesse xingado o presidente do STF, o que não ocorreu, não caberia ao senhor Manuel Seabra determinar um ato de censura, assim, ao bel prazer. E a tal “tentativa de responder a isso”? Prestem atenção: queriam inserir entrevistas de Gilmar Mendes e de um “representante da CPI dos Grampos”, a título de direito de resposta... num programa de debate! Como não conseguiram tal proeza, optaram em colocar novamente o programa no ar. Entenderam?

Eu explico, me acompanhem: o diretor da TV Câmara recebeu uma reclamação de “assessores” do ministro Gilmar Mendes (na verdade, a reclamação foi ao presidente da Câmara dos Deputados, deputado Michel Temer). Em seguida, envergonhado por não ter o outro lado, ele decidiu tirar o programa do ar e retirar o link do site da internet. Na verdade, extirpar, porque nem nos arquivos da página ele podia ser encontrado. Exatamente como faziam os stalinistas, nas fotos oficiais da extinta URSS, quando os camaradas dissidentes caíam em desgraça. Nesse ínterim, entre os dias 16 e 24 de março, Manuel Seabra tentou, em vão, entrevistar Gilmar Mendes e um representante da CPI dos Grampos. Eis um detalhe curioso: os repórteres da TV Câmara não conseguiram entrevistar o presidente do STF, que dá meia dúzia de entrevistas por semana, e, mais incrível ainda, NENHUM deputado da CPI dos Grampos! Diante de tal quadro de desolação, Manuel Seabra decidiu, então, recolocar o link no site. Vencido, pois, pelo cansaço.

Inacreditável, vale ressaltar, foi a evolução das versões. No dia 19 de março, instado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, o assessor de imprensa do deputado Michel Temer, Márcio Freitas, negou qualquer participação da presidência da Câmara na censura. Argumentou que o programa entrou numa fila, foi seis vezes ao ar e depois foi retirado para dar lugar a outros programas. Nonsense total. Essa regra não existe, nunca existiu. Além disso, o assessor nada falou sobre a retirada do link. Depois, uma funcionária da TV Câmara afirmou que o link foi retirado do ar por conta de um defeito técnico. Aliás, um defeito muito peculiar, porque só atingiu um link do site inteiro – o do debate do qual participei. Não colou. No dia 24 de março, foi a vez do Secretário de Comunicação da Câmara, Sérgio Chacon, emitir uma nota dizendo que o programa foi exibido “cinco vezes” (jornalista é ruim de conta mesmo) e que não houve pressão “de quem quer que seja” para interromper a exibição. Como assim? E os “assessores” (são quantos, afinal?) do ministro Gilmar Mendes??

A entrevista do senhor Manuel Seabra, como qualquer estudante de jornalismo pode perceber, é um ato de confissão: Gilmar Mendes mandou tirar o programa Comitê de Imprensa do ar e extirpar o link do site. A alegação de que houve ofensas pessoais é risível, senão patética, porque, mesmo durante o período da censura, diversos blogs veicularam o programa para milhões de internautas, alheios ao devaneio da direção da TV Câmara. No vídeo, atualmente com mais de 10 mil exibições registradas em apenas um dos links do YouTube, não há uma única ofensa a ninguém. Sobre Gilmar Mendes, me referi, dentro do contexto da Operação Satiagraha (logo, dentro do tema “Protógenes Queiroz”), sobre o profundo desequilíbrio da cobertura da mídia, quase toda voltada para fixar no delegado a pecha de fanático por grampos ilegais (sem uma única prova) e lustrar a imagem do presidente do STF como paladino do Estado Democrático de Direito. Citei, ainda, o fato de Mendes estar me processando, e à CartaCapital, por conta de uma matéria – absolutamente jornalística – sobre o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual o ministro é sócio. Trata-se de instituição construída com dinheiro do Banco do Brasil, em terreno praticamente doado pelo governo do Distrito Federal e com contratos de mais de 2 milhões de reais firmados, sem licitação, com órgãos públicos e tribunais. Onde está a ofensa nisso?

O que ofende a todos nós, jornalistas, é essa tentativa primária de encerrar um assunto gravíssimo, baseado em prova documental (as imagens do site com e sem o link censurado), a partir de uma defesa confusa, contraditória e tardia, elaborada sem o menor compromisso com o jornalismo, a ética e a boa educação. Leio, estarrecido, que por causa desse episódio, a TV Câmara pretende “reformular” o programa “Comitê de Imprensa”, até então considerado um fórum plural e democrático de discussão entre jornalistas de diversos veículos, pensamentos e opiniões. Segundo Manuel Seabra, o programa terá pautas “mais fechadas”, seja lá o que isso signifique. E os apresentadores (quais? Não era só um?) estarão avisados “para evitar novos ataques pessoais”. Só pode ser piada. O que farão os apresentadores? Darão choques elétricos nos entrevistados? Vão acionar aquele “piiii!” usado para camuflar os palavrões proferidos pelos participantes do Big Brother Brasil?

Mesmo o mais foca dos estagiários sabe o que vai acontecer, de fato: censura prévia. Aos entrevistados, aos temas, ao programa. Algo me diz que o “Comitê de Imprensa” subiu no telhado.

Reitero, pois, meu pedido à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e ao Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal para que abracem essa causa, não em meu nome, mas de todos os jornalistas e cidadãos brasileiros, cerceados, estes, no seu direito de ter acesso a informação pública em uma emissora do Congresso Nacional, custeada pelo contribuinte. Não é pouca coisa. O Sindicato dos Jornalistas do DF abriu uma investigação pelo Comitê de Ética para apurar os fatos. Apuração, aliás, facílima. Matéria pronta, eu diria.

E viva a liberdade de expressão.

Por Leandro Fortes

Fonte: Carta Capital

::
Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: