Por Luiz Antonio Magalhães
Uma das características marcantes da atual fase da revista Veja – e que a diferencia de um veículo noticioso – é a editorialização das reportagens. É bem verdade que em maior ou menor grau, os jornalões brasileiros também trazem em suas matérias um bocado de opinião travestida de informação, mas nenhum vai tão longe quanto Veja. No limite, é até complicado para os leitores comuns perceberem o que é fato e o que é contrabando ideológico no semanário da Abril, o mais vendido do país.
Um ótimo exemplo deste tipo de "confusão" está na reportagem de capa da edição corrente da revista (nº 2106, de 1/4/2009). Com o chamativo título "A queda da casa de luxo", a prisão da empresária Eliana Tranchesi, dona da Daslu, foi tema da "Carta ao Leitor", que na prática é o editorial da publicação, e de uma longa reportagem assinada por Laura Diniz, Bel Moherdaui e Sandra Brasil.
No espaço editorial, com o título "A lei vale para todos", Veja defende que a empresária "não pode ser demonizada como o símbolo da desigualdade e da injustiça social no país". Defende também que "é preciso desestimular as tentativas de enxergar na punição da dona da Daslu uma condenação também a todos aqueles que, apenas por desfrutar uma boa situação material, parecem aos olhos do populismo rasteiro cidadãos privilegiados e inimputáveis."
Ostentação e futilidade
Até aqui, nenhum problema, a "Carta ao Leitor" é um canal de comunicação entre a direção da revista e o seu público. E a direção de Veja tem todo o direito pensar dessa forma e escrever o que quiser. Além da preocupação com a "caça aos ricos", a publicação se mostra mais uma vez na vanguarda do liberalismo: "Deve-se refrear também o impulso de ver no comércio de artigos caros e requintados apenas mais uma demonstração viciosa das classes abastadas. As pessoas que fabricam e vendem essas mercadorias, desde que respeitem as leis, são cidadãos tão úteis à comunidade quanto quaisquer outros", deixa claro o editorialista de Veja.
Tudo bem de novo, não há mal algum em explicar ao leitorado que o comércio de alto luxo é tão útil ao país como o de alimentos, eletrodomésticos ou automóveis. O problema, no entanto, está na reportagem, onde o leitor de Veja espera ou deveria esperar um relato detalhado dos fatos que marcaram a semana.
O lide da matéria realmente revela os principais eventos relacionados à prisão da dona da Daslu, mais eis que no segundo parágrafo começa o contrabando ideológico: "Assim como ser pobre não é qualidade, ser rico não é um crime, ao contrário do que esperneiam os demagogos de credo esquerdista. A riqueza, no mundo capitalista moderno, é fruto de trabalho, ousadia e criatividade – e, como tal, produz emprego, consumo e outras oportunidades de negócios num ciclo virtuoso", diz a "reportagem".
Se parasse por aí, poderia ser apenas um pequeno lembrete, redundante com o editorial, é bem verdade. Mas a coisa vai mais longe, muito longe: "A Daslu parecia concentrar todos esses atributos [trabalho, ousadia e criatividade], por mais que seus detratores a apontassem como um ícone da ostentação e da futilidade – que, aliás, estão entre os direitos garantidos a qualquer cidadão numa democracia".
Realmente, é bom saber que ostentação e futilidade são direitos garantidos a todos os brasileiros pela nossa Carta Magna. Poderiam também ser melhor distribuídos, a exemplo da renda, que infelizmente acaba vedando o acesso dos compatriotas a esses bens tão básicos para qualquer existência...
"A dor da gente"
O que vem depois desta vigorosa defesa do liberalismo econômico volta a ser uma reportagem, embora com fatos escolhidos e dispostos de maneira a emocionar o leitor com a fragilidade da saúde da empresária, que desde 2006 luta contra um câncer. Nada contra o relato, faz parte da história e traz uma dimensão mais pessoal do drama de Eliana Tranchesi. Não é pouca coisa lutar contra uma doença grave e ao mesmo tempo se defender em um processo judicial com o valor de causa tão exorbitante quanto o que a empresária enfrenta, de cerca de R$ 600 milhões.
Humano, demasiadamente humano, porém, é o trecho em que as repórteres explicam como foi o dia da dona da Daslu atrás das grades:
"Eliana dormiu sozinha numa cela de 9 metros quadrados, onde às 21h30 de quinta-feira foi instalado um colchão especial recomendado pelo médico. Também recebeu frutas, livros, lençóis e toalhas. Na sexta-feira, almoçou a comida da prisão (arroz, feijão e frango). Na mesma entrevista, ela manifestou seu `inconformismo pela injustiça que estou vivendo e pela desproporção da pena´. `Tenho a sensação de que o tempo parou enquanto a vida corre lá fora´, comparou. E anunciou seu primeiro projeto em liberdade: `A evangelização em favelas onde o tráfico é intenso´."
Pode ser tudo verdade – provavelmente os fatos são esses mesmos –, mas o que se percebe na construção da reportagem é um encadeamento para comover o público e convencer os desavisados que a lutadora e sensível empresária foi parar no Carandiru por uma dessas maldades que acomete juízes despreparados. O crime de sonegação fiscal cometido por Eliana e seus sócios é do tipo que não provoca muita indignação, até porque a parte lesada, em última análise do governo brasileiro, não encontra grandes defensores por aí. Assim, ao terminar a reportagem de Veja, o leitor fica com a impressão de que uma barbaridade foi cometida contra a empresária e também contra o "direito de empreender".
Tudo somado, a mensagem final da matéria é rigorosamente a mesma da "Carta ao Leitor": "Sim, os ricos também sofrem (e isto não é nada bom para o Brasil)". No mais, a única coisa que ninguém vai achar nas páginas de Veja em matérias sobre a Daslu é uma explicação, breve que fosse, sobre o que seria possível ao governo fazer com o valor sonegado pela boutique – quantas moradias, cestas básicas, ligações de água e esgoto ou qualquer outra medida comparativa. Claro, o dinheiro extra que foi para o caixa da empresa deve ter garantido o emprego de alguns, mas em detrimento da carência de muitos. Já dizia Chico Buarque em uma antiga canção: "A dor da gente não sai no jornal". Na Veja então, nem pensar...
Fonte: Observatório da Imprensa
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