DEBATE ABERTO
Se a narrativa das redações da organização monopolista aposta no esquecimento como premissa de legitimação, relembrar é estabelecer a rota de colisão necessária. Assim, segue um artigo escrito em 7 de novembro de 2005. Não há uma linha a ser alterada.
por Gilson Caroni Filho
A jornalista Miriam Leitão não costuma ser econômica quando o assunto em pauta é uma heresia a seu credo neoliberal. Ao nacionalizar a Siderúrgica Sidor, retomando para o Estado venezuelano um patrimônio que havia sido privatizado em 1997, o presidente Hugo Chávez estaria, segundo ela, em busca de dois objetivos: “enfrentar um enorme problema de inflação e desabastecimento" e “garantir que projetos importantes fiquem prontos para ajudar nas eleições de novembro de governadores e prefeitos".
O desrespeito da empresa a direitos trabalhistas é pretexto para uma liderança que “não abandonou a idéia de um grande controle estatal sobre alguns setores-chaves da economia". Didática, Leitão é categórica: "enquanto houver Hugo Chávez, haverá notícia. Costumamos dizer isso por aqui porque, afinal, ele não economiza em novos fatos."
Se por notícia entendermos um relato falseado a partir de argumentos de consultores estadunidenses, a colunista estará dando uma magnífica aula de como mídia cria sua agenda. E, em se tratando de América Latina, uma demonstração cabal de, como há tempos, a pauta permanece inalterada. Dessa forma, pedimos ao leitor que veja a atualidade de um artigo publicado há três anos no Observatório da Imprensa, com o título “Macaco, olha o teu rabo”. Se a narrativa das redações da organização monopolista aposta no esquecimento como premissa de legitimação, relembrar é estabelecer a rota de colisão necessária. Assim, segue o que foi escrito em 7 de novembro de 2005. Não há uma linha a ser alterada:
"Há momentos no jornalismo brasileiro que nos remetem à atualidade de velhos ditos populares. O proverbial "macaco, olha o teu rabo" deveria estar nas capas dos manuais de redação de editores de todas os grandes jornais. Ele sugere que, antes de emitir um juízo de valor sobre o outro, devemos lançar um olhar sobre nossa trajetória e procedimentos atuais. Se isso vale para pessoas, com certeza se encaixa como luva para conglomerados midiáticos. Ainda mais quando vivemos tempos de cólera. De rancor direitista travestido de indignação ética.
Em novembro de 2005,a Rede Globo mal pôde esperar a abertura da 4º Cúpula das Américas, em Mar del Plata, para assestar suas baterias contra a liderança sul-americana mais odiada pelo protofascismo de Washington: Hugo Chávez. No Jornal Nacional de 2/11, o presidente venezuelano foi apresentado como alguém que "mudou a Constituição, aumentou o mandato presidencial, nomeou mais 12 juízes para a Corte Suprema e instituiu um rígido controle sobre os meios de comunicação". Esqueceram de mencionar a tentativa de golpe e o papel ativo das emissoras Venevisión, Globovisión e da RCTV. É certo que, em dados momentos históricos, o que a língua separa o método une. E a simbiose não cessa sem rupturas dramáticas.
Dois dias depois, seria a vez de o dublê de comentarista e bufão Arnaldo Jabor tratar Chávez "como leão de chácara que ataca os Estados Unidos em nome de um socialismo delirante", alertando que "atrás dele iriam os governos fracassados de Lula e Kirchner". Numa linguagem desabrida, beirando a vulgaridade, intenções e gestos mostraram quem são os alvos da ofensiva conservadora. Tanto no âmbito interno como no cenário internacional as cartas estão dadas.
Mas o pior estava por vir. Na edição de 5/11, no jornal O Globo, um pequeno editorial destilava raiva e açodamento, produzindo um texto de péssima qualidade. Algo a ser mostrado a estudantes de Jornalismo como expressão de narrativa condenável, seja qual for a orientação editorial da publicação ou emissora. É legítimo um veículo emitir sua opinião num artiguete, mas a forma como o fez e os adjetivos empregados desnudaram qualquer veleidade de se apresentar como instância de intermediação entre sociedade e Estado. O texto abaixo demonstra a sobreposição de interesses político-empresariais ao direito de informação. Cabe ao leitor concluir se estamos diante de uma construção que objetiva a fiscalização de poderes públicos e privados, assegurando a transparência de relações políticas, econômicas e sociais, ou se vislumbramos a manipulação em estado bruto:
"Maradona colocou na biografia a liderança de uma grande manifestação anti-Bush. O jogador pode estar no auge da recuperação física e psicológica, nessa inesperada demonstração de ardor antiimperialista. Mas a Casa Branca esfrega as mãos de contentamento. Afinal, a bandeira do antiamericanismo em Mar del Plata terminou empunhada por um aparentemente ex-viciado em drogas, amigo de Fidel apenas porque este o acolheu numa overdose. E enquanto Maradona dividia os espaços na mídia com as fanfarronices de Hugo Chávez, as Mães da Praça de Maio e Alfonso Pérez Esquivel, vítimas reais da ditadura argentina, contra a qual Maradona nada fez, ficaram em segundo plano".
Causa espécie a tentativa de desqualificar a ação política a partir da condição de dependente químico de seu protagonista. Pior, resvala para a calúnia ao empregar o advérbio "aparentemente". O editorialista confunde contundência com linguajar rasteiro, com ofensa pessoal. E se alguma publicação afirmasse que o aparentemente ex-alcoólatra Bush, ao fim da cúpula, não teve motivos para esfregar as mãos de contentamento? Qual seria a reação dos sóbrios editores de O Globo?
Certamente o artiguete foi pedido às pressas. Só isso explica tanta desinformação sobre o jogador argentino. Ao afirmar que Maradona nada fez contra a ditadura, o jornal da família Marinho ignora que, ainda atuando, o atleta se notabilizou por críticas contundentes ao governo. Foi sua combatividade que o levou a Fidel, e não uma "overdose". Talvez o ambiente de trabalho produza falhas dessa monta. Ao misturar jornalismo com entretenimento, o profissional do Globo talvez tenha confundido doses e ilhas. Mas isso é ilação para revista de fuxico.
O que chama a atenção do leitor mais atento é a ignorância de outro provérbio: "Não se fala de corda em casa de enforcado". Ao relembrar as vítimas da ditadura militar no país vizinho e perguntar o que o jogador fez por elas, o inspirado editor mexeu em vespeiro. Cabe indagar se a interpelação é extensiva ao maior monopólio informativo da América Latina. O que a Globo fez contra a ditadura brasileira?
Por demais conhecidas, as relações entre o terrorismo de Estado que se instalou em 1964 e a Rede Globo serão aqui apresentadas em tópicos:
1) A emissora de Roberto Marinho começou a operar em 1965, sustentada por um acordo técnico e financeiro com o grupo Time-Life, cujo escopo foi motivo de CPI no Congresso Nacional no ano seguinte. Sarney, no mesmo ano, apoiado por Castelo Branco e tecendo loas aos ditadores de plantão, tornava-se governador maranhense. Cinco anos depois, a Globo, esteio simbólico do regime, completava em seu noticiário a ação propagandística do governo;
2) O noticiário da TV Globo foi o porão informativo em que ficaram represadas as vozes dos que se opuseram ao regime e o grito dos que por ele foram torturados;
3) Após o atentado do Riocentro, uma bomba foi subtraída entre duas edições, em belo exemplo de apoio logístico;
4) Com a Proconsult, empresa contratada pelo TRE para apurar os votos da eleição direta para governador do Eestado do Rio, em 1982, tentou fraudar o resultado para dar a vitória a Moreira Franco, candidato do regime militar;
5) Sabotou, enquanto pôde, a campanha das Diretas-já, em 1984, terminando por ser fiadora de uma transição por alto;
6) Como recompensa, ganhou a NEC do Brasil, um dos principais fornecedores de equipamentos de telecomunicação para o governo, além de inúmeras afiliadas e repetidoras que constituiriam seu império.
Como se vê, pequenas linhas podem reavivar a memória. A Globo não costuma se sair bem quando a história não é contada por ela própria. Fora de sua editora, o que surge é um prontuário de crimes contra a cidadania. Para implantar programas sociais que beneficiam 75% da população venezuelana, Chávez teve que enfrentar o conluio entre a mídia privada e as oligarquias. Pode, mantidas as especificidades de cada formação, ter dado uma aula de ruptura. Sua exemplaridade é a causa do ódio que provoca no baronato da imprensa brasileira. Macacos que não olham o próprio rabo costumam cair dos editoriais que perpetram."
Em abril de 2008, os rabos continuam presos mas o deslocamento pelos galhos, em sua característica posição de cabeça para baixo, põe em risco uma espécie que ainda não percebeu que, tanto nas editorias refrigeradas quanto nas ilhas de edição, não existe madeira de lei. A queda é uma possibilidade cada vez maior.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.
Fonte: Agência Carta Maior
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