sexta-feira, 4 de abril de 2008

Territórios da Cidadania: evolução ou revolução das políticas públicas no meio rural brasileiro?

É certamente a primeira vez na história rural brasileira que o Estado implementa um dispositivo tão importante visando a integração dos produtores mais pobres e a redução das diferenças sociais e produtivas no campo.

No dia 25 de fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa cerimônia solene no Palácio do Planalto, deu início ao Programa dos Territórios da Cidadania. O lançamento foi acompanhado pela criação quase simultânea de 60 territórios distribuídos por todo o país. Este acontecimento marcou de maneira eloqüente a determinação do governo federal de dar um forte impulso à estratégia do desenvolvimento territorial, criada em 2004 mediante a instalação da Secretaria do Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT-MDA) e a implementação do Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PDSTR), inscrito no plano plurianual 2004-2007.

O lançamento do novo programa constitui uma etapa suplementar na intenção de combinar crescimento econômico e reequilíbrio social e territorial, o que aos poucos vem moldando um novo paradigma do desenvolvimento que atrai cada vez mais a curiosidade de outros países.

O que é o Programa dos Territórios da Cidadania? Sua arquitetura, tal como foi apresentada no dia do lançamento, impressiona pela magnitude dos recursos alocados e pela importância das entidades administrativas participantes. Dotado de um orçamento de R$ 11,3 bilhões, o programa pretende atingir aproximadamente mil municípios em 2008, ou seja, uma população de 2 milhões de famílias rurais, e mobilizar a competência de 19 ministérios. Para 2009, há a previsão de incrementar o número de territórios para 120, quando todos os territórios do atual PDSTR serão incorporados ao novo programa. Foram definidas 135 ações públicas, nas áreas econômica, social e de infra-estrutura.

A área econômica acentua o apoio às atividades produtivas agrícolas e pecuárias (assistência técnica, crédito agrícola), à comercialização dos produtos agropecuários (por intermédio do Programa de Aquisição de Alimentos ou mediante ações de apoio ao cooperativismo, às unidades de comercialização e à agroindústria), à produção de biodiesel (assistência técnica, capacitação, pesquisa e desenvolvimento, organização da produção, gestão do selo social) e à regularização fundiária (identificação e delimitação de terras em quilombolas, reassentamento de famílias de áreas indígenas).

Na área social, as ações concentram-se nos temas educação (ativação dos programas Proinfo, Brasil Alfabetizado e Saberes da Terra, construção de escolas), saúde (farmácias populares, atendimento reforçado às famílias), cultura (pontos de culturas, Programa Arca das Letras) e documentação das mulheres e dos trabalhadores rurais. No que diz respeito à infra-estrutura a lista também é longa: abastecimento d’água, construção de habitação em assentamentos e de estradas, elaboração de planos de desenvolvimento sustentável em assentamentos, realização de trabalho de topografia, extensão do licenciamento ambiental e, ainda, generalização da eletrificação rural.

Do ponto de vista institucional, o programa consagra um fortalecimento significativo do MDA, cujo orçamento aumentou mais de 1 bilhão de reais, encarregado da articulação entre todos os atores institucionais, assim como da coordenação geral do programa. O ministério liderará o Comitê Gestor Nacional composto pelas diferentes entidades governamentais participantes do programa; ao nível estadual, as delegacias do MDA terão as responsabilidades de coordenar os Comitês Gestores Estaduais compostos pelos representantes dos órgãos federais e dos colegiados territoriais.

Paradoxalmente, o Programa Territórios da Cidadania representa a continuidade e, ao mesmo tempo, a ruptura com respeito às políticas anteriores. Continuidade, pois dá seqüência às ações iniciadas durante o segundo mandato de FHC, cristalizadas em grandes programas sociais durante o primeiro governo de Lula (Fome Zero, Pronaf, Reforma Agrária etc.), completados, durante esse último período, por programas inovadores (Luz para Todos, Programa Um Milhão de Cisternas). Mas, de uma maneira mais direta, os Territórios da Cidadania se inscrevem como herança direta do PDSTR.

De fato, ao retomar os chamados territórios rurais, selecionados a partir de critérios de ruralidade e de densidade demográfica, recupera simultaneamente o mesmo público-alvo composto pelos agricultores e pescadores familiares, assentados da reforma agrária, acampados, quilombolas e comunidades indígenas. Dessa forma, o Programa Territórios da Cidadania se apresenta como o fortalecimento dos territórios de identidade do PDSTR.

A ruptura, a nosso ver, estaria representada por diversas inflexões importantes. Em primeiro lugar, destaca-se o realismo com que foi encarada a nova estratégia de combate à pobreza rural. Muito se falou sobre a pouca eficiência do PDSTR com respeito a este objetivo, seja pela sua diluição no contexto de um objetivo mais geral de desenvolvimento de territórios de identidade, seja pelos parcos recursos financeiros e humanos disponibilizados. Com este novo programa, o combate à pobreza rural converteu-se no principal objetivo de ação, dando lugar a uma série de opções metodológicas precisas, começando pelo critério de seleção (situações com menor IDH).

O incremento significativo de verba e pessoal também contribuiu para essa mudança de postura. Não se trata somente de redistribuir os recursos precedentes, mas, de ampliar e concentrar o financiamento para situações geográficas e humanas de maior necessidade, como também de multiplicar e combinar as políticas sociais e as competências técnicas de diferentes ministérios.

Uma segunda ruptura com o PDSTR é a mudança do paradigma implícito que sustenta cada programa. O anterior se fundamentava na idéia de território de identidade, que supõe a existência de um corpo de normas (simbólicas ou não) específicas da sociedade local. Sendo assim, o programa objetivava ajudar a coletividade local na definição e implementação de ações coerentes com as normas aí estabelecidas, respondendo a objetivos compartilhados. Nesta lógica, o papel do Estado se limitava (ou devia se limitar) a uma função de arbitragem e de apoio, mediante a alocação de recursos e a prestação de serviços, notadamente na capacitação nas áreas da gestão técnica e administrativa de projetos coletivos. Obviamente, os Territórios de Cidadania possuem outra função.

Trata-se, para o Estado, de concentrar seus esforços em áreas marcadas por uma situação de pobreza rural aguda, para induzir um processo de desenvolvimento econômico e social acelerado. Sendo assim, a estratégia corresponde a um processo de territorialização das políticas públicas, que por sua vez remete a dois fenômenos bem diferentes: a desconcentração da ação pública e a descentralização do processo de governança. O primeiro corresponde à preocupação do poder público de adaptar a sua política à realidade local para atender melhor as necessidades dos cidadãos.

Em outras palavras, trata-se de estabelecer delegacias territoriais para agilizarem as políticas públicas federais e facilitarem a sua implementação. A coordenação territorial dos grandes programas federais (Bolsa Família, Pronaf, Luz para Todos etc.) responde evidentemente a esta preocupação. A função da descentralização é diferente, uma vez que ela objetiva compartilhar o processo de decisão, notadamente no que diz respeito à elaboração de políticas públicas, entre o poder público central, os estaduais e municipais e os atores territoriais privados e civis.

Implementar uma descentralização implica necessariamente interferir na estrutura da repartição do poder, o que evidentemente não é uma operação anódina. A substituição do Pronaf Infra-estrutura em 2004, que era administrado pelas prefeituras municipais, pelo PDSTR, administrado pelos fóruns de desenvolvimento territorial, mostrou as tensões criadas pela emergência de uma nova forma de descentralização. Já o Programa Territórios da Cidadania envolve de maneira simultânea os processos de desconcentração e de descentralização da ação pública. O primeiro é materializado pelo poder dado às delegações estaduais do MDA na administração dessas áreas, ao passo que o segundo é evidenciado pela dupla vontade do governo federal de associar os poderes estaduais e municipais ao gerenciamento do programa e delegar parte do poder decisório a entidades da sociedade civil, no quadro do conselho de desenvolvimento territorial.

Um outro elemento de ruptura com o quadro anterior, talvez ainda mais significativo que o precedente, é o esforço notável a cargo dos gestores para introduzir um dispositivo de coordenação das políticas públicas rurais no nível local. De certo modo, esta preocupação de integração vai de encontro à estratégia de fragmentação das políticas públicas, inscrita no processo de reforma do Estado, que tomou força a partir do final dos anos 1980, não só no Brasil mas no mundo todo, sob a firme orientação de instituições internacionais, tais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento ou o Fundo Monetário Internacional.

De fato, essas instituições preconizavam que a segmentação das políticas públicas era a única via operacional para atingir objetivos precisos, limitando o papel do Estado e os custos da intervenção pública, naquilo que ficou conhecido como a focalização dos programas governamentais. Vale a pena lembrar que esta orientação rompeu com a prática das políticas integradas, em voga no período de crescimento econômico com base no modelo de substituição de importações e que procuravam atender todos os aspectos ligados a um determinado ramo de atividade.

Assim, a reintrodução da preocupação com a coerência entre as diferentes políticas públicas orientadas a uma base territorial não pode ser considerada apenas como um fenômeno secundário. Ao contrário, pode estar anunciada aí uma evolução mais profunda do processo de elaboração das políticas públicas.

Finalmente, podemos até pensar que os Territórios da Cidadania poderiam romper com a forma histórica pela qual tem se dado a atuação do Estado no meio rural. Este processo, já experimentado com a implementação do Pronaf e demais programas de redução da pobreza no meio rural, poderia conhecer, através dessa intervenção territorializada, a expressão ampliada, já que é a primeira vez que se ataca com determinação o processo de marginalização da agricultura familiar. É certamente a primeira vez na história rural brasileira que o Estado implementa um dispositivo tão importante visando a integração dos produtores mais pobres e a redução das diferenças sociais e produtivas no campo.

Evidentemente é muito cedo para avaliarmos a profundidade da mudança do processo de desenvolvimento rural induzida pelo novo programa e sabermos se ele acarretará uma verdadeira revolução na maneira como o Estado enxerga a agricultura familiar, ou se trará apenas uma leve evolução destinada a corrigir os problemas sociais e econômicos mais flagrantes. Contudo, no momento de concluir este artigo cabe ressaltar, mais uma vez, a diferença existente entre as lógicas respectivas da territorialização da ação pública e de projetos coletivos territorializados. Consideramos que seria prejudicial para os produtores rurais e as comunidades rurais se o Programa Territórios da Cidadania se limitasse apenas ao primeiro aspecto.

Philippe Bonnal é pesquisador do CIRAD e pesquisador-convidado do CPDA/UFRRJ e do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).

Fonte: Agência Carta Maior


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