domingo, 13 de abril de 2008

Na disputa entre Cristina Kirchner e ruralistas, um sinal para o Brasil

Queda queda-de-braços entre o governo da Argentina e os grandes proprietários de terras mostra que é, sim, possível redistribuir os lucros do agronegócio

(Por Marília Arantes, da Redação)

No último mês de março, colunas de ruralistas argentinos seguiram rumo a Buenos Aires. A mobilização buscava obrigar a presidente Cristina Kirchner a voltar atrás de uma decisão tomada em 11/3, quando foram elevadas as alíquotas do imposto sobre a exportação de produtos agrícolas. Em parte, conseguiu resultados. Três semanas de protestos (que incluíram corte do abastecimento alimentício à capital, por meio de bloqueio das estradas por caminhões), deixaram a capital federal desabastecida e caótica, fazendo sofrer os portenhos. Setores da população, sensibilizados contra o que a maior parte da mídia chamou de “confisco” contra os produtores agrícolas, aderiram. Contudo, no último 2/4, a situação foi normalizada. Ao fazer concessões aos pequenos produtores, Cristina isolou os grandes ruralistas. Novas mobilizações, em favor das medidas da presidente, superaram as contrárias. Os tributos sobre as exportações continuam valendo. Na Argentina, ao menos uma parte dos ganhos extraordinários obtidos pelos proprietários de terras, com a alta internacional das matérias-primas, é redistribuída por meio de impostos.

Os fatos ajudam a jogar luz sobre novas relações econômicas e políticas, em países que são (como o Brasil) fortes produtores agrícolas. A reporter Stella Spinelli conta, no site Peace Reporter, (ler também em nosso clip) que as exportações de grãos da Argentina – para a velha Europa e agora também para China, Índia e Sudoeste da Ásia, onde o consumo de alimentos cresce sem parar – chegaram a 13 bilhões de dólares anuais. As grandes plantações de milho, girassol e principalmente de soja transgênica invadiram o interior do país, tomando espaço da criação de gado e de culturas tradicionais, como o trigo e o algodão. Além disto, 80% dos lucros do agronegócio ficam nas mãos dos grandes proprietários. Somente 2% dos produtores concentram a propriedade de 55% da terra cultivada para os fins de exportação, em uma média de 15 mil hectares cada fazenda. Estão associados a gigantes mundiais do processamento e comércio de produtos agrícolas, como Bunge, Dreyfus e Cargill

É justo que tão poucos enriqueçam com a nova conjuntura? A quem pertencem a água que irriga as lavouras, ou a luz que as alimenta: aos que já monopolizam a terra? Desde 2002, o governo argentino criou um tributo – denominado taxa de retenção – sobre o valor das exportações agrícolas. A alíquota foi elevada para 35% na presidência de Nestor Kirchner. Ainda assim, os preços internacionais são tão apetitosos que as vendas ao exterior continuaram crescendo – a ponto de provocar desabastecimento interno. A nova elevação do imposto (agora para 44%, no caso da soja) visou, também, enfrentar este problema. O país ganha: entre outras ações, a receita tem servido para financiar a produção de milho e trigo, consumidos no mercado interno e cultivados, em geral, por pequenos produtores. Os exportadores não perdem, como mostra artigo publicado em 8 de abril pelo ex-ministro da Fazenda brasileiro Luiz Carlos Bresser Pereira, insuspeito de esquerdismo (ler no clip).

A reação à medida de Cristina é principalmente ideológica: os grandes produtores não suportam a idéia de distribuir o que julgam “seu”. Em sua grita, souberam mobilizar parte dos pequenos – muito mais numerosos, e também obrigados ao tributo.

Cristina cede aos pequenos produtores e isola a “oligarquia rural”

Para enfrentar o que chama de oligarquia rural, a presidente fez concessões aos menores, apresentadas num pacote de sete medidas, no início de abril. Entre outros benefícios, o Estado restituirá automaticamente, a quem exporta até 50 toneladas anuais, parte do valor arrecadado com a nova alíquota. Também participará com 50% do preço do frete até o porto, quando a distância percorrida for superior a 400 quilômetros. Foi o que isolou, ao menos até o momento, os grandes ruralistas – que contam com enorme apoio no Legislativo, na mídia, no próprio aparato do Estado.

É uma pena que o conflito argentino seja tratado, no Brasil, sem a profundidade necessária. O país caminha para se tornar o maior exportador agrícola mundial. As exportações agrícolas (e de minérios) foram as principais responsáveis pelos expressivos saldos comerciais dos últimos anos. Mas esta “eficiência” tem sido alcançada com enorme concentração da propriedade, condições de trabalho desumanas e ataque permanente aos principais ecossistemas do país (em especial, o cerrado e a Amazônia). A adoção bem-sucedida, no país vizinho, de um imposto sobre as exportações revela que é perfeitamente possível rever, aqui, o modelo de favorecimento ao agronegócio e adotar políticas que distribuam de forma mais eqüânime os benefícios de nossa potencialidade agrícola.

Fonte: Blog do Le Monde Diplomatique Brasil


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