sexta-feira, 4 de abril de 2008

EDUARDO GALEANO - Espelhos, uma história quase universal

Espelhos, uma história quase universal

No fim da Inconfidência Baiana, o poder colonial indultou todos, com quatro exceções: Manoel Lira, João do Nascimento, Luís Gonzaga e Lucas Dantas foram enforcados e esquartejados. Os quatro eram negros, filhos ou netos de escravos. Há quem acredite que a Justiça é cega.

Alguns capítulos do livro "Espelhos/ Uma história quase universal", de Eduardo Galeano, que em breve estará nas livrarias:

O herói
Como teria sido a guerra de Tróia contada do ponto de vista de um soldado anônimo? Um grego a pé, ignorado pelos deuses e desejado apenas pelos abutres que sobrevoam as batalhas? Um camponês metido a guerreiro, cantado por ninguém, por ninguém esculpido? Um homem qualquer, obrigado a matar e sem o menor interesse em morrer pelos olhos de Helena?

Teria pressentido esse soldado o que Eurípedes confirmou depois? Que Helena nunca esteve em Tróia, que somente sua sombra esteve ali? Que dez anos de matanças ocorreram por uma túnica vazia?

E se esse soldado sobreviveu, o que lembrou?

Quem sabe.

Talvez o cheiro. O cheiro da dor, e simplesmente isso.

Três mil anos depois da queda de Tróia, os correspondentes de guerra Robert Fisk e Fran Sevilla contam que as guerras têm cheiro. Eles estiveram em várias, sofreram-nas por dentro, e conhecem esse cheiro de podridão, quente, doce, pegajoso, que se mete por todos os poros e instala-se no corpo. É uma náusea que jamais te abandonará.

Americanos
Conta a história oficial que Vasco Núñez de Balboa foi o primeiro homem que viu, desde um cume do Panamá, os dois oceanos. Os que ali viviam, eram cegos?

Quem colocou seus primeiros nomes no milho e na batata e no tomate e no chocolate e nas montanhas e nos rios da América? Hernán Cortés, Francisco Pizarro? Os que ali viviam, eram mudos?

Os peregrinos do Mayflower escutaram: Deus dizia que a América era a Terra Prometida. Os que ali viviam, eram surdos?

Depois, os netos daqueles peregrinos do norte apoderaram-se do nome e de todo o resto. Agora, americanos são eles. Os que vivemos nas outras Américas, o que somos?

Fundação dos desaparecimentos
Milhares de mortos sem sepultura deambulam pela pampa argentina. São os desaparecidos da última ditadura militar.

A ditadura do general Videla aplicou em escala jamais vista o desaparecimento como arma de guerra. Aplicou, mas não inventou. Um século antes, o general Roca utilizou contra os índios esta obra prima da crueldade, que obriga cada morto a morrer várias vezes e que condena seus queridos a ficarem loucos perseguindo sua sombra fugitiva.

Na Argentina, como em toda a América, os índios foram os primeiros desaparecidos. Desapareceram antes de aparecer. O general Roca chamou de conquista do deserto a sua invasão das terras indígenas. A Patagônia era um espaço vazio, um reino do nada, habitado por ninguém.

E os índios continuaram desaparecendo depois. Os que se submeteram e renunciaram à terra e a tudo, foram chamados de índios reduzidos: reduzidos até desaparecer. E os que não se submeteram e foram vencidos à bala e sabraços, desapareceram transformados em números, mortos sem nome, nos comunicados militares. E seus filhos desapareceram também: repartidos como butim de guerra, chamados com outros nomes, esvaziados de memória, escravinhos dos assassinos de seus pais.

Pai ausente
Robert Carter foi enterrado no jardim.

Em seu testamento, pediu descansar debaixo de uma árvore de sombra, dormindo em paz e escuridão. Nenhuma pedra, nenhuma inscrição.

Este patrício da Virgínia foi um dos mais ricos, talvez o mais, entre todos aqueles prósperos proprietários que se tornaram independentes da Inglaterra.

Apesar de que alguns pais fundadores dos Estados Unidos tinham má opinião sobre a escravidão, nenhum deles libertou seus escravos. Carter foi o único que desacorrentou seus quatrocentos e cinqüenta negros para deixá-los viver e trabalhar segundo sua própria vontade e prazer. Libertou-os gradualmente, cuidando que nenhum fosse lançado no desamparo, setenta anos antes de que Abraham Lincoln decretasse a abolição.

Esta loucura condenou-o à solidão e ao esquecimento.

Deixaram-no sozinho seus vizinhos, seus amigos e seus parentes, todos convencidos de que os negros livres ameaçavam a segurança pessoal e nacional.

Depois, a amnésia coletiva foi a recompensa por seus atos.

A Justiça vê
A história oficial do Brasil continua atraindo inconfidências, deslealdades, às primeiras revoltas pela independência nacional.

Antes que o príncipe português se transformasse em imperador brasileiro, houve várias tentativas patrióticas. As mais importantes foram as de Minas Gerais e da Bahia.

O único protagonista da Inconfidência Mineira que foi enforcado e esquartejado, Tiradentes, era um militar de baixa graduação. Os demais conspiradores, senhores da alta sociedade mineira fartos de pagar impostos coloniais, foram indultados.

No fim da Inconfidência Baiana, o poder colonial indultou todos, com quatro exceções: Manoel Lira, João do Nascimento, Luís Gonzaga e Lucas Dantas foram enforcados e esquartejados. Os quatro eram negros, filhos ou netos de escravos.

Há quem acredite que a Justiça é cega.

Olympia
São femininos os símbolos da revolução francesa, mulheres de mármore ou bronze, poderosas tetas nuas, gorros frígios, bandeiras ao vento.

Mas a revolução proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e quando a militante revolucionária Olympia de Gouges propôs a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, a guilhotina cortou sua cabeça.

Ao pé do cadafalso, Olympia perguntou:

– Se as mulheres estamos capacitadas para subir na guilhotina, por que não podemos subir nas tribunas públicas?

Não podiam. Não podiam falar, não podiam votar.

As companheiras de luta de Olympia de Gouges foram trancadas no hospício. E pouco depois de sua execução, foi a vez de Manon Roland. Manon era a esposa do ministro do Interior, mas nem isso pôde salvá-la. Foi condenada por sua antinatural tendência à atividade política. Ela tinha traído sua natureza feminina, feita para cuidar do lar e parir filhos valentes, e havia cometido a mortal insolência de meter o nariz nos masculinos assuntos de estado.

E a guilhotina caiu de novo.

Os invisíveis
Em 1869, o canal de Suez tornou possível a navegação entre dois mares.

Sabemos que Ferdinand de Lesseps foi autor do projeto, que o paxá Said e seus herdeiros venderam o canal aos franceses e aos ingleses em troca de pouco ou nada, que Giuseppe Verdi compôs a ópera Aída para que fosse cantada na inauguração e que noventa anos depois, após uma longa e dolorosa disputa, o presidente Gamal Abdel Nasser conseguiu que o canal fosse egípcio.

Quem lembra dos cento e vinte mil presidiários e camponeses, condenados a trabalhos forçados, que construindo o canal caíram assassinados pela fome, a fadiga e a cólera?

Em 1914, o canal do Panamá abriu um talho entre dois oceanos.

Sabemos que Ferdinand de Lesseps foi autor do projeto, que a empresa construtora faliu, em um dos mais estrondosos escândalos da história da França, que o presidente dos Estados Unidos, Teddy Roosevelt, apoderou-se do canal e do Panamá e de tudo o que encontrou pelo caminho, e que sessenta anos depois, após uma longa e dolorosa disputa, o presidente Omar Torrijos conseguiu que o canal fosse panamenho.

Quem lembra dos operários antilhanos, indianos e chineses que caíram construindo o Canal? Por cada quilômetro morreram setecentos, assassinados pela fome, a fadiga, a febre amarela e a malária.

As invisíveis
Mandava a tradição que os umbigos das recém nascidas fossem enterrados debaixo da cinza do fogão, para que cedo aprendessem qual é o lugar da mulher, e que daí não se sai.

Quando estourou a revolução mexicana, muitas saíram, mas levando o fogão nas costas. Por bem ou por mal, por seqüestro ou por vontade, seguiram os homens de batalha em batalha. Levavam o bebê grudado na teta e nas costas as panelas e as caçarolas. E as munições: elas encarregavam-se de que não faltassem tortillas nas bocas nem balas nos fuzis. E quando o homem caía, empunhavam a arma.

Nos trens, os homens e os cavalos ocupavam os vagões. Elas viajavam nos tetos, rogando a Deus que não chovesse.

Sem elas, soldaderas, cucarachas, adelitas, vivanderas, galletas, juanas, pelonas, guachas, essa revolução não teria existido.

Nenhuma recebeu pensão.

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

Fonte: Agência Carta Maior
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