domingo, 13 de abril de 2008

De traficante para vips

Ricardo Lísias

Como um amigo do tempo de faculdade tinha vindo para São Paulo descansar um pouco, achei que uma ótima distração seria o bazar dos bens pessoais do traficante Juan Carlos Abadia. O bazar precedeu o leilão dos pertences mais caros do colombiano, marcado para a quarta-feira 9. Eu achava que encontraria um ou outro garoto deslumbrado pelas camisetas de marca, alguma fila diante das bolsas chiques, com desconto, e queria conferir algo que me parecia impossível: se estavam mesmo vendendo as cuecas usadas do sujeito e frascos de perfume pela metade. Como a feirinha seria montada no Jockey Club de São Paulo, imaginei que de repente eu conseguiria assistir ao menos um páreo. Corridas de cavalo têm uma beleza inusitada e transparente.

Chegamos um pouco antes das 14 horas e demos de cara com uma fila que se abria para os dois lados de um portão fechado. Meu amigo ficou furioso, atravessou a rua e entrou em um ônibus com destino ao Centro Velho de São Paulo. Ele queria visitar o Pátio do Colégio. Perguntei para um guarda o que estava acontecendo e ele me explicou que aquele povo tinha ido lá ver se comprava alguma coisa do traficante. Aí chamaram a polícia para ajudar a fechar o portão, onde já se viu...

No meio do burburinho, ouvi um porteiro dizendo que tinha perdido a hora do almoço. Apesar dos avisos de que o “evento” estava encerrado, as pessoas continuavam com esperança na fila. Atrás de mim uma senhora riu e disse que, se tivéssemos paciência, depois que os ricos comprassem, talvez deixassem a gente entrar para ver o resto. Sem querer acreditar, eu disse para ela que, aparentemente, ninguém estava entrando.

Não era bem assim, logo vi, mesmo no portão protegido pela polícia, que vários carros entravam e saíam e, do mesmo jeito, alguns dos tais “representantes da imprensa” estavam passando. Uns dez minutos depois, as pessoas começaram a se irritar com a hipótese de favorecimento na entrada. A fila começou a se dissolver e um grupo se acumulou na frente do portão. Nervosos e muito conscientes do seu ofício, os policiais gritavam que ninguém tinha o direito de atrapalhar o trânsito. Foram vaiados, mas a revolta diminuiu um pouco quando um carro parou no meio do portão e um sujeito bem barbeado e com o terno limpo (não sei dizer se do Abadia ou não) tentou falar alguma coisa ao microfone. Como não funcionou, a gargalhada foi ainda maior e alguém levantou a hipótese de ele ser o advogado do pessoal lá de dentro.

Logo, porém, uma senhora elegante e bem maquiada pegou o microfone. Muito digna, e sentindo-se profundamente nobre, assim que o som voltou, ela começou a falar: pois bem, infelizmente, o Abadia é um só e não tem lá dentro coisa para todo mundo; se a gente se comportasse, quem sabe o juiz autorizasse outros “eventos” parecidos e aí todo mundo poderia levar uma roupinha que fosse.

Naturalmente, a senhora, presumo que honrada representante de uma das instituições de caridade que organizaram os bens do traficante para vender, recebeu uma enorme vaia. Deixa a mãe do Abadia falar, gritaram lá de trás.

Completamente magoada com aquela recepção ingrata, a velhota fechou a cara e voltou para dentro. Resolvi ir embora, mas para isso eu precisava contornar o Jockey pelo lado de fora do estacionamento. Uns 200 metros à frente, achei um portãozinho com dois rapazes uniformizados fumando. Resolvi perguntar se eu não podia entrar por ali. Eles disseram que não, mas perguntaram se eu era sócio do Jockey. Por quê? Ah, eles estão entrando lá por trás, dando a volta e indo para o bazar.

Quem da fila conseguiu entrar? Sei lá, respondeu o outro, umas 40 pessoas. Achei boa idéia conferir o estacionamento, mas não precisei ir tão longe: em outro portão, algumas pessoas aguardavam com sacolas de pano completamente cheias, protegidas pelo vidro e por alguns seguranças irritados. Logo, um rapaz apareceu com uma televisão e, do lado de dentro, chamou um táxi. Fiz uns gestos e um sujeito risonho resolveu se aproximar. Ele me explicou que estava dentro do Jockey para fazer umas coisas desde cedo. Que coisas ele não quis dizer, mas o segurança o chamava pelo nome. Pareciam amigos.

Lépido e faceiro, o homem me mostrou orgulhoso o vinho que tinha acabado de comprar. Sei lá, não achei grande coisa. Inclusive, vi duas moças mostrando uma para a outra os presentes para o namorado. Meio kitsch, mas talvez eu esteja com inveja, né?! Perguntei para o dono do vinho quem tinha conseguido comprar, daquele jeito tão barato, as coisas do Abadia. Ora, ele me respondeu: os jornalistas que foram cobrir o “evento” e muita gente fina. Reparei que, de fato, quase todos os carros que saíam com sacola pareciam bem caros. Alguns tinham motorista.

Por fim, uma moça apareceu atrás do vidro com uma sacolinha na mão. O namorado, logo atrás, carregava um volume maior. Estavam contentes, mas ela parecia meio encabulada. Provavelmente, tinha comprado um frasco usado de perfume francês. Os vips de fato fizeram a festa com as coisas usadas do traficante. Ninguém soube me dizer quem tinha levado a tal televisão de plasma.

Então, dois rapazes contornaram o portão e estacionaram o carro para a moça envergonhada e o namorado entrarem correndo. Provavelmente, estavam indo para a USP, ali perto. Essa garotada fina, que usa perfume francês e roupa de marca do Abadia, estuda lá. Como o colégio do irmãozinho está muito caro, eles precisam comprar roupa com desconto. Logo o carro arrancou, mas um pouco à frente diminuiu a velocidade e o espertão no banco da frente gritou para um grupo que, frustrado, caminhava até o ponto de ônibus: “Vão para casa, bando de cheira saco!” Beleza, seu filho da puta, só que é você quem vai vestir a cueca usada do Abadia.

Fonte: Carta Capital
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