sexta-feira, 8 de maio de 2009

Sugestão para a nova Lei Rouanet

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por Marcelo Träsel*

Há uns dois posts andei criticando a visão empresarial — e, para falar a verdade, a do próprio Governo Federal, que no fim das contas é um dos responsáveis pela aprovação dos projetos — sobre a finalidade e os resultados da Lei Rouanet. Em resumo, o sistema de renúncia fiscal hoje privilegia mais o espetáculo do que a arte e a formação cultural, porque a decisão sobre o destino dos recursos em geral fica a cargo de um gerente de marketing em alguma empresa privada. Há exceções, como a Petrobras, por exemplo, que por seu caráter semipúblico e por exigência de responsabildade social por parte do mercado finaneiro, adota métodos mais transparentes para a escolha de projetos a apoiar.

Refletindo sobre o tema, lembrei que alguns projetos, como o Multipalco, recolhem doações diretamente de pessoas físicas. Incentivar esse tipo de doação parece ser um bom caminho para a resolução de muitos dos problemas da Lei Rouanet, pois uma das principais dificuldades para os artistas captarem recursos é justamente o acesso e a sensibilidade das empresas a propostas mais ousadas e de menor exposição. Infelizmente, há entraves legais no caminho. Conforme o texto da nova Lei Rouanet:

Art. 23. Os limites da dedução sobre o imposto de renda devido, quando da utilização dos mecanismos de incentivo fiscal, previstos nesta Lei, obedecerão aos seguintes percentuais:

I - pessoa física - dedução de valores no limite de seis por cento do imposto devido na declaração de ajuste anual; e

II - pessoa jurídica tributada com base no lucro real - dedução de valores despendidos no limite de quatro por cento do imposto de renda devido.

§ 1o A dedução de que trata o inciso I do caput:

I - está limitada ao valor pago no ano-calendário a que se referir a declaração;

II - aplica-se somente ao modelo completo de Declaração de Ajuste Anual;

Ou seja, a maioria das pessoas físicas, que informam sua movimentação financeira anual à Receita usando o modelo simplificado de declaração, estão impedidas de colaborar com projetos culturais através da Lei Rouanet. Os números referentes ao ano de 2004, o último com dados disponíveis, mostram que apenas 30% das declarações seguem o modelo completo, sendo que cerca de 10% da população declara alguma coisa — o resto é isento. Isso significa que menos de 5% dos contribuintes brasileiros podem fazer doações à cultura via Lei Rouanet.

Essa questão deveria ser contemplada nos debates sobre renúncia fiscal e na consulta pública sobre as mudanças na Lei Rouanet. Por que não simplificar o acesso a esse mecanismo, de modo que possa ser usado com o modelo simplificado de declaração? E por que as pessoas físicas isentas de prestar contas à Receita Federal estão excluídas de participar das leis de incentivo à cultura? Afinal, imposto de renda todo mundo paga, seja via DARF, seja retido na fonte. Os artistas, principalmente, deveriam se mobilizar por mudanças nesse aspecto, além de se informarem e divulgarem mais o mecanismo. É de fato muito difícil encontrar informações sobre doação como pessoa física e isso emperra a prospecção de toda uma reserva de 20 milhões de declarações de renda para o custeio de obras de arte.

Se fosse mais fácil usar parte do imposto de renda, artistas e produtores poderiam mobilizar pessoas interessadas em suas obras a destinar recursos diretamente para seus projetos. Os públicos, as comunidades culturais poderiam decidir quais são os artistas que melhor as representam e apoiá-los, sem ter de passar pelo crivo publicitário de diretores de marketing ou pelos critérios muitas vezes duvidosos ou preguiçosos de comissões privadas e estatais. Isso fomentaria uma cultura brasileira mais diversa, mais aberta à experimentação e, portanto, contribuiria com a formação de públicos.

A doação como pessoa física traz ainda o benefício de fazer o cidadão se sentir responsável pelo desenvolvimento da cultura nacional e pela fiscalização do uso dos recursos. Em outras palavras, colabora para uma melhor compreensão do espírito da democracia.

Pode-se argumentar que ninguém está proibido de passar a fazer uma declaração completa, em vez da simplificada. É verdade, mas nada impede tampouco que as leis sejam modificadas para diminuir o custo da colaboração em projetos artísticos. Uma declaração completa exige muito mais trabalho e, às vezes, mesmo a contratação de um contador, sem falar na aporrinhação de se guardar um monte de recibos. Provavelmente há alguma explicação técnica para essa exigência, porque a declaração completa facilita auditorias, mas a técnica deve estar a serviço da política — inclusive a cultural — e não o contrário.

O Bruno Neyra sugere um formato semelhante ao do desenvolvimento de software open source para o financiamento de projetos culturais, uma noção não muito diferente da idéia aqui. Imagino justamente os fãs de determinado artista mobilizando suas declarações de renda para direcionar parte dos recursos do Estado a seus projetos. Qualquer um pode doar dinheiro diretamente, é claro, mas por que não usar 6% do imposto de renda para isso? Por que só empresas e pessoas com rendimentos suficientes para se preocuparem com uma declaração completa podem decidir como o Estado investe esses recursos? Afinal, o erário é de todos e a responsabilidade deveria ser de todos.

*Marcelo Träsel é jornalista, professor de Comunicação da Famecos/PUCRS, consultor em novas mídias. Faz doutorado no PPGCOM/PUCRS. Além deste blog, mantém o Garfada e o Conversas Furtadas. Para entrar em contato, clique aqui.

Fonte: Blog do Träsel

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