::
por Roberto Malvezzi*
Uma das razões fundamentais dos desencontros na interpretação das crises que passamos está exatamente em qual ciência nos apoiamos para buscar as categorias de interpretação da realidade. As ciências sociais e econômicas, a partir de suas diversas matizes ideológicas, têm uma resposta na manga para a crise. A leitura liberal está fragilizada. A neoliberal está morta. O que ressurgiu na prática é a intervenção avassaladora do Estado para salvar o capital privado, particularmente o financeiro, em vários recantos do planeta.
Por outro lado, para a linhagem marxista, a crise é atribuída ao neoliberalismo e ao próprio capitalismo em geral. Crise de superprodução, sem poder aquisitivo das massas, o que levou a bolhas de endividamentos, falências e alastramento da crise econômica.
Entretanto, para muitos outros - entre os quais me coloco modestamente -, é preciso o amparo de outros ramos da ciência para compreendermos a crise na sua verdadeira vastidão e profundidade. É necessário recorrer às ciências naturais, particularmente às ciências da Terra, à climatologia, esse ramo da ciência disputado pela meteorologia e geografia. Continuamos necessitando das ciências sócio-econômicas, mas agora em interconexão com as ciências da Terra. Ainda mais, precisamos combinar as ciências com a sabedoria das populações ancestrais, exatamente aquelas que, por sua visão cuidadosa e simbiótica com a natureza, protegeram o que nos resta de florestas, rios e biodiversidade.
A universidade não nos ajuda numa leitura de conjunto, holística. Pelo contrário, o pensamento acadêmico se tornou absolutamente compartimentado, sem visão de conjunto. Mesmo os tais textos interdisciplinares são justaposições de uma visão ao lado da outra, não o estabelecimento de conexões entre os diversos campos do saber para estabelecer uma leitura total da realidade.
O que as ciências da Terra têm nos dito é que a ação humana sobre a Terra a modificou. Nosso planeta se aqueceu pela liberação artificial de gases na atmosfera, particularmente o carbônico. Ainda mais, a Teoria de Gaia nos coloca em um novo patamar, muito mais revolucionário que a teoria da Evolução das Espécies de Darwin ou da luta de classes de Marx. Acima delas está a evolução do planeta, do qual todas as formas de vida dependem. Gaia tem a capacidade de expurgar as vidas que ferem suas leis. Nesse sentido, Gaia reage ao desequilíbrio provocado pelos seres humanos e agora vai se readequar para sobreviver enquanto ser vivo. Todas as outras formas de vida que a habitam pagarão o preço dessa readequação, particularmente os seres humanos.
A reação vem chegando com mais calor, fenômenos extremos como secas e enchentes, furacões, modificando o regime das chuvas, a temperatura que influencia diretamente as colheitas, podendo produzir mais escassez de água, de solos, de alimentos.
Nesse momento de encruzilhada se colocam em xeque, em confronto, muitas opções imediatas que devemos tomar. Essas decisões são tomadas à direita e à esquerda. O fato de serem de uma ou outra pode estar correto ou equivocado.
Para exemplificar. O agronegócio tem afirmado, inclusive pela boca de seu ministro, Reinold Stephanes, que, se "sua atividade econômica não puder avançar na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado, em áreas de fronteiras, etc., a atividade estará inviabilizada". O ministro sequer percebe que, com suas próprias palavras, passou o atestado de óbito ao agronegócio, isto é, sem depredar a atividade não se sustenta. Num momento da história que é preciso descarbonizar o desenvolvimento, o agronegócio não pode existir sem desmatar. Portanto, há um paradoxo do movimento econômico com a sustentabilidade do planeta e de todas as formas de vida. Qual é a opção nós já conhecemos.
Mas temos problemas concretos também à esquerda. Nesse mesmo momento em que somos obrigados a buscar uma economia descarbonizada, o Brasil descobre alguns bilhões de barris de petróleo na camada pré-sal. Exatamente quando precisamos caminhar para energias limpas, as esquerdas estão envolvidas numa campanha "o petróleo é nosso", despertada pela cobiça do capital estrangeiro ao petróleo de nossos mares. A pergunta é óbvia: mesmo que renda uma fortuna ao Brasil, convém explorar esse petróleo se observarmos a relação dessa matriz energética com o aquecimento global, que prejudica a todos, inclusive os brasileiros, particularmente o Norte e o Nordeste? Na racionalidade econômica ele deve ser explorado. Na racionalidade das ciências da Terra é melhor que permaneça onde está.
Nós precisamos de todas as ciências – sem dispensar jamais a sabedoria e o modo de viver das populações ancestrais - para interpretar e escolher o melhor caminho para a humanidade e todas as formas de vida. Cada opção exigirá a combinação do imediato com o médio e longo prazo. Mas é preciso que as ciências sejam capazes de estabelecer interconexões entre elas, do contrário, não contribuirão na escolha de uma nova civilização. Decididamente, a economia – sobretudo a predadora, a produtivista, a consumista etc. - não pode ter mais a última palavra sobre o destino humano e do planeta.
*Roberto Malvezzi (Gogó), ex-coordenador da CPT, é agente pastoral.
Fonte: Correio da Cidadania
::
Nenhum comentário:
Postar um comentário