quarta-feira, 8 de outubro de 2008

STF: lobos em pele de Cordero?

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por Tarciso Dal Maso e Deisy Ventura

A eventual recusa do pedido de extradição do militar uruguaio Manuel Cordero Piacentini, formulado pela Argentina e pelo Uruguai, não somente envergonha o Brasil, como pode ensejar a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por ato do Poder Judiciário. O julgamento desta ação pelo STF foi suspenso por um pedido de vista do Ministro Cesar Peluso, ao atingir o triste placar de 4 votos contrários e 1 favorável. Toma corpo, assim, uma inaceitável obstrução à Justiça dos países vizinhos que, diferentemente do Brasil, cumprem a obrigação internacional de julgar ou extraditar os criminosos internacionais que se encontram em seu território (aut dedere aut iudicare).

O General Cordero foi um dos protagonistas da Operação Condor, o famigerado plano de cooperação entre as ditaduras do Cone Sul. Preso no ano de 2007, em Santana do Livramento (RS), tramitam contra Cordero ações penais relativas a numerosos crimes, entre os quais o seqüestro de crianças, a tortura contumaz e o desaparecimento forçado de cidadãos argentinos e uruguaios. Note-se que, como tipo penal próprio do direito internacional, o desaparecimento forçado é crime contra a humanidade, logo imprescritível e imune a toda sorte de anistia.

Por conseguinte, causa estupefação o voto do Relator do processo, Ministro Marco Aurélio, ao vincular diretamente a extradição de Cordero à interpretação do alcance da lei brasileira de anistia: "feridas das mais sérias, consideradas repercussões de toda ordem, poderão vir a ser abertas. Isso não interessa ao coletivo. (...) Deferida a extradição, abertas estarão, por coerência, as portas às mais diversas controvérsias quanto ao salutar instituto da anistia".

Deplorável este voto, tanto por razões políticas como jurídicas. Primeiro, há uma partidarização expressa: o Ministro visa diretamente à castração da luta pela abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil, e pela responsabilização dos agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade naquele período. O Relator julga, portanto, não a extradição de Cordero, mas o absurdo temor de que ela seja aqui entendida como precedente. Por infortúnio, já foi seguido pelos Ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia Rocha e Eros Grau – tendo apenas Enrique Lewandowski optado pelo deferimento.

No que atine ao direito, nossa indignação se agiganta. Ora, a extradição nada mais é do que o pedido formulado por um Estado a outro, de que este lhe entregue uma pessoa para que responda a processo ou cumpra pena no território daquele. Unânime doutrina assegura não caber ao Estado demandado explorar o mérito da acusação, reservado exclusivamente à Justiça do Estado que pede a extradição.

Para nosso profundo constrangimento, o Relator pôs-se a tergiversar sobre a natureza do crime de Cordero, recorrendo, à la carte, a dispositivos das leis argentina ou brasileira. Forja a cizânia quanto ao tipo penal em espécie, se seqüestro ou homicídio, quando se trata obviamente de desaparecimento forçado. Retoma, ainda, a estéril discussão positivista sobre a incorporação de normas internacionais na ordem brasileira, formalismo só lembrado quando se trata de direitos humanos, eis que o direito comercial de fonte estrangeira aqui grassa livremente.

Que o Brasil possa julgar seus criminosos internacionais é, sem dúvida, assunto da alçada do STF, que responderá perante a história pela posição que tomar, se e quando for chamado a fazê-lo. Porém, impedir que os países vizinhos o façam, deturpando um processo internacional para atingir alvo interno, constitui uma mácula imerecida para o Brasil em suas relações internacionais.

O cúmulo do desalento é o epílogo do voto do Relator: "a cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas (Padre Vieira)". Faz lembrar Stanley Kubrick e seu filme Eyes Wide Shut (no Brasil, De olhos bem fechados) sobre o que há de insuportável na verdade para quem se regala com o mundo em que vive. Embora ver independa dos olhos, os nossos estão bem abertos, em vigília pelo direito à memória e à justiça, imprescindível para que um dia, de fato, a tortura e a execução sumária, entre outros crimes, sejam abominados por nossa cultura e apurados pela nossa jurisdição.

Fonte: Carta Capital

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