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por Emiliano José
...Fui com outras duas senhoras que também estavam procurando, vimos somente cadáveres, bem torturados estavam, tinham arrancado as entranhas, a queixada, a língua, um olho, as unhas, os dedos estavam cortados.A família Teles conseguiu: o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, o criminoso que dirigiu o DOI-CODI entre 1970 e 1974, foi declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Ele torturou pessoalmente, com requintes de absoluta crueldade, como era de sua característica, Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles, que eram casados, e Criméia Schmidt de Almeida, além de ter, também, torturado os filhos de Maria Amélia e César, Janaína e Edson Luís.
Amelinha – como todos a chamam – foi presa junto com o marido no dia 28 de setembro de 1972, à tarde. Eram militantes do PC do B, clandestinos desde 1965. Ustra torturará de modo tão violento os dois que César chegará a ficar em coma por muitos dias. Ustra, que era conhecido como major Tibiriçá, ordenou aos seus policiais que voltassem à casa onde residiam e prendessem os dois filhos deles – Janaína tinha cinco anos, Edson Luís, quatro.
Na Operação Bandeirantes (OBAN), os torturadores explicam para os dois que os pais estavam doentes. Por isso, haviam sido levados para aquele hospital. Janaína não se conformava:
- Por que no hospital tem soldado com espingarda e com metralhadora?
Edson Luís olhou para Amelinha e perguntou:
- Mãe, por que você está roxa?
E Janaína:
- Por que o pai está verde?
Nem César, nem Amelinha diziam nada. Houve um momento em que Edson Luís, depois de esquadrinhar o local, bater nas grades, ver presos, ouvir gritos, voltou-se para Amelinha:
- Mãe, você é bandida?
- Não, meu filho, não sou bandida, mas estou presa.
Nesse momento, os policiais arrastaram as crianças, e Amelinha ainda pôde ouvir o grito angustiado de Edson Luís, vivendo o terror, a tortura aos quatro anos de idade:
- Mãe, você está brincando de bandida, né?
...O Estádio de Huanta era um campo de futebol. Quantos tinham morrido ali? Centenas, milhares, dezenas de milhares. Fique você sabendo que, só de ver um preso, Chacho já adivinhava quanto tempo resistiria debaixo d´água. Algumas vezes, em vez de água, o latão estava cheio de bichos, de animais, ratazanas e formigas gigantes da selva, era um aperitivo vê-los assim antes de entubá-los com os fios.
Era 29 de dezembro de 1972. Amelinha e César só voltarão a ver as crianças em julho de 1973. Primeiro, elas ficaram numa casa clandestina em São Paulo, uma espécie de aparelho policial. Depois foram entregues a um policial de Belo Horizonte, delegado de entorpecentes, casado com Lúcia Teles, irmã mais velha de César, tudo à revelia dos pais.
Janaina, em 1975, com apenas sete anos, irá expressar a sua dor, num poema singelo e sugestivo, onde a palavra dói aparece com impressionante freqüência. Seu consciente não alcançava ainda a dimensão do que era DOI-CODI. Sua intuição infantil, seu inconsciente sim.
Dói gostar dos outrosOi para todos
Boa tarde pra todos
E um viva para todos
Uns versos vou escrever
Vou começar... atenção
Prestem atenção
Dói o peito chorar
Dói nós chorar
Dói os seus olhos chorarem
Dói nós viver
Dói ver os outros chorar
Dói a natureza chorar
Dói gostar dos outros
Dói cair uma pedra no seu pé
Dói falar tchau, amigos.
Criméia foi levada para a OBAN junto com as crianças. Passava-se por empregada de Amelinha e César. O álibi não funcionou. A gravidez dela impedia o uso do pau-de-arara, segundo a orientação de um médico que assistia os torturadores. Ela me disse que até hoje ainda se recorda de Ustra chegando e gritando do corredor:
- Aquela comunista filha da puta vai se ver comigo!
Ao ser arrastada, vê César se movimentar com dificuldades até a grade, todo arrebentado, massacrado pelas torturas, na outra cela, olhando angustiado a cena. Criméia, então, ergue o polegar, a dizer, com o gesto, que agüentaria a tortura. Ustra percebeu. Quase lhe quebra o dedo.
Nessa primeira sessão de torturas, desmaiou de tanto apanhar. Quando voltou a si, muito tempo depois, quase não enxergava. O rosto todo inchado, os olhos lacrimejantes. Percebia que todos olhavam para ela assustados com seu estado. Várias vezes foi obrigada a ver a irmã ser torturada:
- Aumenta os choques para que essa filha da puta fale! – gritava histérico o major Ustra.
E completava:
- É você que está torturando sua irmã.
Ao torturar Amelinha com o pau-de-arara e com os choques, ele pretendia não só tirar informações dela própria como forçar Criméia a falar. O sofrimento – confessa Criméia – parecia maior do que se os choques fossem em seu próprio corpo.
...E logo ouvir os golpes na cara, o ruído dos fios nos testículos ou nos seios (com um pequeno chiado, tinha dito Guayo), os uivos atrás da parede, as filas para os estupros, a pestilência da própria carne, o sangue que salpica o rosto tem um sabor amargo, dá um pouco de náuseas.
Janaína e Edson, quando reencontraram os pais na prisão, em julho de 1973, não sabiam conversar entre si. Abraçavam-se, choravam, não falavam. Como se tivessem desaprendido. Só depois de algum tempo, muitos abraços, muito choro dos filhos e dos pais é que Janaína perguntou pelo tio Sig:
- É verdade que ele morreu de tanto apanhar?
Era.
Tio Sig era Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PC do B, preso também no dia 28 de dezembro de 1972. Em 1954, Danielli já pertencia ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na ruptura de 1962, segue o PC do B.
Foi tão torturado logo na chegada que nunca pôde subir para o andar superior da OBAN, onde as torturas eram usualmente praticadas. Desde as primeiras horas se tornou um trapo, tão machucado, maltratado se encontrava, embora sempre altivo, sem dizer uma palavra aos seus carrascos, o mais destacado dos quais era o major Ustra. Os cúmplices eram os capitães Ubirajara – Aparecido Laerte Calandra – e Dalmo Lúcio Muniz Cirillo.
Amelinha, Criméia e César assistiram à morte, à lenta agonia de Danielli sem nada poder fazer. Era o dia 29 de dezembro de 1972.
Viram jogarem ácido nas mãos dele. Viram-no balbuciar, pedindo água, tombado no chão. Ou gemendo, pedindo um cigarro. Amelinha tinha ouvido dele, quando em liberdade, que, caso preso, nada diria. Melhor, diria apenas ser comunista. E que um comunista não fala.
E foi assim.
E o mataram.
E Amelinha, César, Criméia viram a morte dele: Danielli na cela em frente, encostado na parede, a calça arriada, a barriga inchada, que denunciava que havia sido destruído por dentro. O corpo exibia feridas, manchas roxas. Saía sangue do nariz, da orelha, da boca.
Os três, à beira do desespero, vendo-o na agonia final. Lentamente ele foi arriando, a vida desaparecendo do corpo destruído. No dia 30 de dezembro, o corpo foi retirado da OBAN numa maca, todo sujo de sangue.
No dia 5 de janeiro de 1973, o capitão Aparecido Laerte Calandra mandou buscar Amelinha e César e exibiu-lhes um jornal onde se lia o título em letras garrafais: Terrorista morto em tiroteio. “É mentira, você o mataram. Nós vimos”, protestaram os dois. “Nós podemos dar a versão que nos convier”, respondeu friamente o capitão.
Esse era o território de Ustra, a OBAN, sucursal do inferno.
Quando o céu ficasse azul, quando o céu fosse azul, os soldados iam matar... e então vi o azul no céu, quando vi as paredes de Huamanga como fiquei contente, já era a hora azul, iam me ver, os soldados iam me encontrar.
(As citações que intercalam o texto são do belíssimo livro de Alonso Cueto,
A hora azul – Rio de Janeiro : Objetiva, 2006. As demais informações são retiradas de meu livro
As asas invisíveis do padre Renzo – São Paulo: Casa Amarela, 2002.)
Fonte:
Carta Capital::
A hora azul
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