quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ifigênia e Eloá

::

Foto:Reinaldo Marques/Terra
Multidão no Cemitério Santo André durante o enterro de Eloá Cristina Pimentel, terça-feira (21)
Multidão no Cemitério Santo André durante o enterro de Eloá Cristina Pimentel, terça-feira (21)

por Ronaldo Correia de Brito
Do Recife (PE)

Em nome de que causa foi sacrificada a jovem Eloá Cristina? Apenas em razão do ciúme e do desespero de seu ex-namorado Lindenberg Fernandes?

Lembro a história de Ifigênia, uma adolescente sacrificada para que o vento soprasse na praia de Áulis. Há vários dias os guerreiros gregos esperavam a hora de partir rumo a Tróia, onde libertariam Helena, raptada pelo inimigo troiano, o sedutor Páris. Desde que o pai de Ifigênia, o comandante dos gregos, matara uma cerva consagrada à deusa Ártemis, não soprava a mais leve brisa e os navios pareciam inúteis, com suas velas arreadas. O oráculo exigia que o rei Agamenon imolasse a própria filha no altar da deusa caçadora, para aplacar sua ira.

Os guerreiros querem lutar para que nunca mais nenhuma mulher grega seja raptada. Os mais renomados heróis estão ali à espera do vento. Sabendo das condições impostas pela deusa, eles exigem que o comandante supremo entregue a moça. Temendo a perda do prestígio e da própria vida, Agamenon manda buscar a filha mais velha, dizendo que a convoca para o noivado com o jovem Aquiles, o mais valente dos heróis gregos.

Sem desconfiar da armadilha, Ifigênia vai ao encontro do destino trágico, acompanhada de sua mãe Clitemnestra e do irmãozinho Orestes. O pai recebe-a com lágrimas, o que desperta desconfiança. Mais tarde, a armadilha é descoberta pelas duas mulheres. Clitemnestra suplica a ajuda de Aquiles e Ifigênia implora ao pai que não a mate, pois não deseja morrer tão jovem. Mas Agamenon se mostra irredutível e nem esposa nem filha o comovem. Aquiles é o único que se dispõe a arriscar a própria vida, lutando contra o exército para salvar a donzela.

Como em todas as tragédias gregas chega o momento em que o protagonista toma consciência do seu destino e resolve não se rebelar contra ele. Ifigênia pede que a escutem e descobre-se que ela se elevou a uma dimensão trágica em que a vida adquire um novo significado.

Ela fala: "Ouçam a minha decisão. Morrerei extirpando qualquer sentimento indigno de meu peito e cumprirei o meu destino. Todos os olhares da Grécia repousam sobre mim, de mim dependem a viagem da frota e a queda de Tróia, sobre mim descansa a honra das mulheres gregas. Meu nome se cobrirá de glória e serei chamada de libertadora da Grécia". É sacrificada e o vento sopra forte na praia. Os navios partem, os heróis chegam a Tróia e começa a sangrenta guerra de homens e deuses que todos conhecemos como Ilíada.

Quem lutou contra o rapto de Eloá Cristina, presa sob a mira de um revólver, durante 100 horas? A amiga Nayara, de apenas 15 anos, alguns parentes do raptor, a polícia... Quem mais? Desde o início, o enredo desse seqüestro também apontava para um desfecho trágico. Todos os olhares e ouvidos do Brasil, através de rádios, televisão e jornais repousavam sobre a menina que se movia da janela de um apartamento para interiores invisíveis, de rotina apenas pressentida. Que horrores ela viveu? Que medo terá sentido?

Ninguém ouviu a fala de Eloá. Ninguém a escutou revelando que escolhia um destino trágico. Ela já se decidira em não querer Lindenberg, um criminoso a quem sua mãe incompreensivelmente perdoou. Seus outros desejos ficam no campo das especulações.

Todos nós devemos vestir o preto do luto. O sacrifício de Eloá pesa sobre nossas consciências, por sua falta absoluta de sentido, pelo espetáculo em que foi transformado e ao qual assistimos passivos, sentados em poltronas, comendo pipoca.

Será que depois de mais este sacrifício feminino os homens reverão seu papel de agressores? Ou Eloá morreu por nenhuma causa? Apenas para salvar a vida de uns poucos que receberam seus órgãos doados?

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens.

Fonte: Terra Magazine

::

Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: