quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Exploração de indígenas nos canaviais do MS é histórica

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Desde o Proálcool, índios Terenas e, principalmente, Guaranis cortam cana para a indústria sul-mato-grossense. Pacto do Trabalhador Indígena, de 1999, regula a atividade, mas não garante condições dignas reais de trabalho

Por André Campos

Alimentação deficiente, banheiros entupidos e alojamentos precários. Esse foi o panorama encontrado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na Fazenda e Usina Debrasa, em Brasilândia (MS), durante fiscalização coordenada pelo órgão em novembro de 2007. Nos dormitórios dos cortadores de cana, havia superlotação, mofo e restos de comida pelo chão. Segundo os fiscais, também faltava água para o banho e os salários estavam atrasados. Mais de mil trabalhadores tiveram seus contratos rescindidos.

Oito meses antes, o MTE já havia encontrado problemas em outra usina de Mato Grosso do Sul. Na Destilaria Centro-Oeste Iguatemi (Dcoil), em Iguatemi (MS), pertencente ao médio do trabalho Nelson Donadel, uma diligência flagrou trabalhadores sem carteira assinada, sem equipamentos de segurança e, mais uma vez, em alojamentos superlotados. Os dois casos - que apareceram com destaque entre as operações de 2007 - foram incluídos na atualização semestral da "lista suja" do trabalho escravo (veja a relação completa), divulgada semana passada. A "lista suja" congrega infratores de todo o território nacional que exploraram pessoas em condição análoga à de escravos - crime que, no Código Penal, abrange tanto situações de trabalho degradante, como as descritas, quanto de restrição à liberdade de ir e vir.

Além da localização geográfica, outra característica une as duas usinas: o emprego maciço de mão-de-obra indígena. Na Dcoil, 150 dos resgatados eram dos povos Terenas ou Guaranis. Já na Debrasa, quase todos eram índios. O Ministério Público do Trabalho (MPT) estima em 10 mil os aldeados que labutam nos canaviais do estado. Juntamente com bóias-frias trazidos - quase sempre de forma irregular - da Região Nordeste, são a principal força de trabalho utilizada pelo setor sucroalcooleiro em plena expansão.

Passado e presente
A história dessa relação, porém, remonta à década de 1980, quando o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) alavancou a produção de cana-de-açúcar em terras sul-mato-grossenses. Já naquela época, havia índios cortando cana-de-açúcar nas lavouras, capinando a terra para o plantio ou trabalhando como "bituqueiros" - encarregados de recolher a matéria-prima cortada. Desde então, a regulação dessa mão-de-obra específica desafia o poder público. Trata-se de uma empreitada complexa, devido principalmente às peculiaridades culturais e jurídicas da situação dos indígenas.

E, para além das questões trabalhistas, permanece um debate mais profundo e incômodo: a atividade consiste em alternativa de emancipação ou em parte dos problemas que hoje assolam essas comunidades indígenas?

A informalidade e o improviso marcaram o recrutamento no início do Proálcool. Eles partiam das aldeias em grandes grupos rumo aos canaviais, distantes centenas de quilômetros, e lá trabalhavam por cerca de dois meses. A contratação era negociada verbalmente pelo líder do grupo, o "cabeçante" - em geral, um índio mais versado na cultura do homem branco. Em alguns casos, os postos da Fundação Nacional do Índio (Funai) estabeleciam regras pontuais e cobravam taxas comunitárias sobre os contratos.

Cícero Rufino Pereira, procurador do Trabalho no estado, descreve como "verdadeiro trabalho escravo" a situação desses indígenas na década de 1980. Ficavam, diz ele, em barracões de lona, onde bebiam água dos rios junto com os animais. Além disso, era rotina também a presença de crianças no corte da cana. "Em diversas ocasiões, a usina pagava e o cabeçante desviava o dinheiro. E muitas vezes a usina não pagava, enrolava mesmo".

Equipamentos de proteção inadequados: um dos
problemas verificados na Debrasa (Foto: Divulgação)

Devido a pressões, houve algumas melhorias na década seguinte. Mas a carteira de trabalho só viria em 1999, ao ser firmado o Pacto do Trabalhador Indígena no estado.

Alvo de muita polêmica, o registro formal teve resistência de setores da Funai e de usineiros, interessados, à época, em viabilizar um sistema de contratação dos índios por intermédio de "cooperativas". O questionamento da plena autonomia individual desses trabalhadores, amparado no próprio Estatuto do Índio - que sujeita à tutela da União aqueles "ainda não integrados à comunhão nacional" -, embasou argumentos de quem se opôs à adoção pura e simples da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Por fim, prevaleceu a carteira assinada, adotada junto com um modelo de contrato por equipe, que prevê no máximo 70 dias para o retorno dos índios às aldeias, de modo a favorecer a continuidade da vida comunitária. Também ficou estabelecido o pagamento dos ganhos apenas no final da empreitada - para garantir, em tese, que o dinheiro chegue às famílias, face à realidade de alcoolismo e outros excessos, freqüentes nessas jornadas. Outro ponto reiterado foi a obrigação de respeito às normas de conforto, higiene e segurança que regem as relações laborais envolvendo os demais trabalhadores rurais.

De acordo com Cícero Pereira, no entanto, o cumprimento do pacto ainda hoje é deficiente. Nos últimos anos, diligências do MPT têm gerado indenizações por danos morais quando constatadas irregularidades na contratação, segurança e alojamentos. No entanto, o procurador não generaliza os problemas do setor. Segundo ele, destilarias recém-chegadas têm mostrado boa vontade em se adequar à realidade do trabalho indígena. "Tanto é que o índio prefere trabalhar nas usinas novas", argumenta. Devido à proximidade de algumas delas às aldeias, os cortadores voltam diariamente às suas casas - novidade que, via de regra, agrada os moradores das comunidades.

Trabalho de adolescentes é outro tema que preocupa
as autoridades (Foto: André Campos)
Em novembro, quando a Debrasa foi autuada, a Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA) - que faz parte do Grupo José Pessoa, dono da destilaria - questionou os procedimentos da fiscalização. "Estranhamente, os representantes da empresa foram impedidos de acompanhar a ação", afirma nota da companhia, que negou a existência de indícios de trabalho análogo à escravidão. "É válido lembrar, ainda, que a usina é a maior empregadora de mão-de-obra indígena do Mato Grosso do Sul, estado que possui a segunda maior população de índios do Brasil."

No final da década de 1990, as novas regras trabalhistas levaram a Debrasa a intensificar a mecanização das colheitas. "Diante do apelo das autoridades, voltamos a contratar índios justamente por nossa preocupação social. Estamos pagando o pato por causa disso", afirmou à época à Repórter Brasil o presidente da CBAA e do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool de Mato Grosso do Sul (Sindal/MS), José Pessoa de Queiroz Bisneto.

Sete meses depois, em junho deste ano, 55 trabalhadores foram resgatados em outra destilaria do Grupo José Pessoa - a Usina Agrisul, no município de Icém (SP). Após o episódio, o grupo foi excluído definitivamente do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne mais de 180 empresas e associações setoriais. Em ambos os incidentes, foram consideradas insatisfatórias pelo Comitê de Monitoramento do Pacto Nacional as justificativas apresentadas pelos controladores das usinas.

A reportagem procurou a CBAA e representantes do Sindal/MS para ouvir mais detalhadamente a versão dos usineiros sobre a evolução do trabalho indígena no setor, mas não obteve retorno.

Incentivo público e recrudescimento
Atualmente, cerca de dez usinas sucroalcooleiras estão em plena atividade no Mato Grosso do Sul. Em dezembro de 2007, o governo estadual anunciou benefícios fiscais a 43 novos empreendimentos do gênero - 16 dos quais já estão sendo implantados. Essas iniciativas serão responsáveis, de acordo com o Executivo, por 76 mil novos empregos até 2012.

Fiscais autuaram alojamentos irregulares no Mato Grosso do Sul (Foto: Divulgação)
Determinado a cercear o direcionamento de recursos públicos a empresas com problemas trabalhistas, o deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS) apresentou este ano um projeto de lei que impede a concessão de benefícios fiscais a empregadores flagrados usando mão-de-obra análoga à escravidão. Como parte do pacote de incentivos, o orçamento estadual prevê, já para 2008, uma renúncia de R$ 48,5 milhões em impostos sobre empresas de álcool combustível.

"O estado precisa de um instrumento jurídico para inibir o trabalho escravo, já que estamos em vias de receber muitas indústrias", alega Kemp. Em abril, a proposta do deputado foi rejeitada pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Assembléia Legislativa. Agora, ele estuda alternativas para conseguir aprovar um novo marco legal sobre o tema.

A reportagem procurou a Secretaria de Desenvolvimento Agrário, da Produção, da Indústria, do Comércio e do Turismo do MS (Seprotur) para saber se as empresas flagradas empregando mão-de-obra análoga à escravidão no estado beneficiam-se de incentivos fiscais. Também indagou se há, no âmbito da Seprotur, alguma orientação visando vetar tais benefícios a empregadores envolvidos com problemas do gênero. A Secretaria Estadual, no entanto, não se manifestou.

Nesse ciclo expansionista, o recrudescimento de antigas formas de exploração, alimentado pela disputa de mão-de-obra, preocupa o procurador Cícero. "Há denúncia de cabeçantes que estariam aliciando menores de idade para que peguem a carteira de outros índios, troquem a foto e vão cortar cana".

Um crime nas dependências da Dcoil, em dezembro de 2006, trouxe novamente à tona a questão do trabalho infantil - alvo de intensas campanhas na década de 1990. Na ocasião, após uma discussão, um rapaz registrado na usina como Devir Fernandes, de 24 anos, morreu após ser atingido por golpes de facão desferidos por outro indígena.

Posteriormente, descobriu-se que a vítima era outra pessoa - um jovem de 15 anos. Seus familiares ainda buscam algum tipo de reparação. A destilaria, por sua vez, nega responsabilidade sobre o caso. "Se houve crimes de falsificação de documentos e falsidade ideológica, estes não foram cometidos pela empresa", alega Wilson Marques, assessor jurídico da Dcoil. "O caso já está sendo analisado pelo Poder Judiciário, a quem compete julgar e punir o efetivo responsável, sendo certo que não fomos intimados a nos manifestar."

Confira a segunda parte desta reportagem especial, produzida em parceria com a Revista Problemas Brasileiros:
Trabalho fora da aldeia desestrutura comunidades Guarani

Fonte: Repórter Brasil

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