quarta-feira, 13 de maio de 2009

Trânsito - Existe saída?

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As grandes cidades brasileiras estão cada vez mais engessadas ante a falta de soluções criativas e eficazes. Já não se trata apenas de ampliar o transporte público.

por Phydia de Athayde*

*Com Dal Marcondes, Efraim Neto, Fabrício Angelo e Gisele Paulino, da equipe da revista digital Envolverde

Cravado no miolo do bairro de Perdizes, zona oeste da capital paulista, o edifício residencial The Dream tem algo de simbólico. Por alguma coincidência, encontra-se a igual distância das três principais avenidas do bairro (Sumaré, Pompeia e rua Alfonso Bovero). Além do nome inspirador, serviu de ponto de partida para um experimento sobre a mobilidade possível na maior cidade do País. O objetivo é mostrar as surpresas e percalços de um paulistano de classe média, que hipoteticamente decida trocar o conforto e o tormento do carro particular pelo transporte público para ir de casa ao trabalho, que seria num hospital na rua Borges Lagoa, centro-sul da cidade.

O trajeto une duas regiões de classe média e média alta – a evitar a desgraça do cidadão periférico, condenado ao descaso e às superlotações – e cobre uma distância relativamente curta. Os cerca de 9 quilômetros transformam-se em mais de 13 quando percorridos pelas linhas de ônibus. No experimento, foi necessário tomar dois ônibus.

É manhã de outono, com céu claro e calor sob o sol, e um leve frio à sombra. O trecho que vai do edifício até o ponto de ônibus na avenida Sumaré é um convite à descoberta das pequenas surpresas do bairro, impossíveis de captar à velocidade do automóvel: uma lojinha de presentes, um salão de beleza e um açougue minúsculos, padarias e mercadinhos, residências antigas, sombreadas pelos edifícios, e colocadas à venda. Ao fim do terceiro quarteirão, percorrido a pé, a primeira das muitas ladeiras do bairro se impõe. Em seguida, a descida íngreme exige atenção com os pés devido às calçadas irregulares. Em onze minutos de caminhada, alcança-se a Sumaré. Barulhenta e cheia de carros. Em outros dois minutos de caminhada, chega-se ao ponto de ônibus. Está pichado e sem nenhuma informação sobre as linhas, muito menos sobre itinerários.

Em oito minutos chega o coletivo, um micro-ônibus com destino a Pinheiros (linha 117Y-10). Embora cheio, há um dos assentos estofados disponível. O trajeto até o local da baldeação levaria 21 minutos. A certa altura, a avenida é cruzada, por alto, por um viaduto onde passa também o Metrô. Se alguém pretende atingir a estação, terá de andar cerca de 500 metros e, no caminho, escalar um pequeno barranco de terra para alcançar a rua mais acima, onde fica o acesso ao Metrô. Simplesmente não existe um trajeto amigável para o pedestre que esteja na avenida e queira pegar o Metrô, logo acima, no viaduto. Não será desta vez.

Ainda no ônibus, antes de alcançar o Largo da Batata, onde será feita a baldeação, cruza-se a rua Teodoro Sampaio duas vezes. Há um vaivém meio sem sentido. O largo é um distribuidor de inúmeras linhas de ônibus e se transformou em canteiro de obras do Metrô paulistano. Tapumes de madeira estreitam as calçadas e dificultam a vida de quem quer encontrar um ponto de ônibus específico. Novamente a pé, levam-se oito minutos de caminhada, com os obstáculos da obra, até o ponto do outro ônibus. Desde a saída de casa, já se passaram 50 minutos. Tempo mais que suficiente para percorrer a distância desejada com o carro, mesmo com trânsito ruim. Nesse ponto, à espera do segundo ônibus, o caminho está apenas na metade.

Há umas vinte pessoas no ponto da avenida Faria Lima, que desta vez ao menos tem uma placa a indicar código e nome das linhas que ali passam. O Metrô Sta. Cruz (875C-10) demora seis minutos para chegar. Está cheio, mas não lotado. Novamente, é possível sentar para aguardar o fim do trajeto, que duraria longos 43 minutos. Após percorrer parte da Faria Lima, o coletivo entra no bairro do Itaim-Bibi e faz um zigue-zague até alcançar a Vila Clementino, não sem antes passar pelo trânsito muito lento da rua Tabapuã, onde apenas os motoqueiros têm a sorte de deslizar pelo asfalto.

Ao todo, o percurso consumiu 99 minutos. Uma hora e quarenta de transporte público. Haja disposição. De carro, no dia seguinte e no mesmo horário, o mesmo trajeto levou 32 minutos – enfrentando funis e muitos pontos de lentidão. Ainda assim, levou um terço do tempo. Se o trânsito estivesse livre, o tempo gasto seria ainda menor: vinte minutos. Não se trata de condenar o transporte público. Muito menos de endeusar o automóvel. Repensar a mobilidade urbana é a única chave para um futuro menos caótico. Planejar como evitar o colapso total, porém, contraria toda a tradição.

Durante toda a segunda metade do século XX, as cidades foram remodeladas para o uso intensivo de automóveis. Quando a mobilidade urbana começou a ficar comprometida, a primeira opção dos governantes foi buscar uma saída pela engenharia. Grandes obras viárias, alargamento de avenidas e novos viadutos rasgaram a paisagem. Começou a construção de metrôs, embora em quantidade reduzida. Mais recentemente, o asfalto urbano ganhou a presença de um enxame de motocicletas, mais ágeis, mais rápidas e mais perigosas do que os carros. Apenas em São Paulo há 750 mil motos. Estatísticas mostram que elas estão envolvidas em 30% dos acidentes de trânsito. Por ano, o trânsito paulistano faz 1,5 mil vítimas, metade delas por atropelamento. Por dia, morrem dois motociclistas.

Outras cidades brasileiras crescem e, infelizmente, reproduzem o modelo que tornou São Paulo uma cidade inviável. Aumentar o espaço destinado aos veículos, a opção de outrora, é medida inócua diante da velocidade de produção e venda de novos veículos. São Paulo licencia 900 automóveis por dia, ou quase 400 mil por ano. Para rodar nas mesmas ruas.

Pesquisa do Ibope realizada em novembro de 2008 mostra que a mobilidade (melhor seria a “imobilidade”) é um dos principais pontos negativos na qualidade de vida dos paulistanos. Há uma grande insatisfação com o desrespeito às faixas para pedestres, as calçadas mal construídas e mal conservadas, e com o tempo perdido no trânsito. Quanto ao transporte público, mais de 90% dos 1,5 mil entrevistados reconhecem ter opções perto de casa, mas metade deles está totalmente insatisfeita com o serviço. A experiência relatada alguns parágrafos acima dá uma medida dessa insatisfação. Os 61 quilômetros de linhas de Metrô, que atendem 3,5 milhões de usuários por dia (no pico, 13 por metro quadrado), e a frota de 15 mil ônibus, que transportam 5,6 milhões de passageiros, são insuficientes para os 11 milhões de paulistanos – ou os quase 20 milhões de habitantes da região metropolitana.

No Brasil, há uma relação direta entre o PIB dos municípios e o número de carros. Quanto mais ricas, mais cheias de carros e congestionadas as cidades. No país que inventou a produção de automóveis baratos e em série, os Estados Unidos, existem 800 carros por mil habitantes. Em São Paulo são 200 por mil, enquanto Brasília tem 400 carros por mil habitantes, a maior quantidade per capita no País.

“Hoje, 85% da população do Brasil mora nas cidades. A urbanização é um fenômeno que não tem volta. Todos procuram melhores salários e serviços nas regiões centrais, e isso piora o trânsito em todas as cidades brasileiras”, explica Fernando Barbosa, diretor de regulação e gestão da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana (SeMob) do Ministério das Cidades. “Além disso, as classes C e D estão lentamente tendo condições de comprar automóveis. Carro é também uma questão de status.”

Na mesma linha de raciocínio, Oded Grajew, presidente da ONG Movimento Nossa São Paulo, acredita que a mobilidade urbana só melhorará se for vista sob uma nova ótica. “Serviços públicos de saúde, cultura e educação devem ser distribuídos aos bairros para, assim, revitalizar essas regiões também do ponto de vista das atividades geradoras de emprego e renda”, diz. Segundo ele, o essencial é reduzir o volume de deslocamentos pela cidade, pois, se todos os motoristas tiverem a ideia apresentada na abertura dessa reportagem, o sistema de transporte público entraria em colapso imediatamente.

“O ideal seria as pessoas se locomoverem por opção e não por necessidade”, sonha Grajew. Na prática, defende ele, a cidade só poderá ficar mais sustentável se o processo de participação política passar a contar com maior presença da sociedade. Com apoio da Nossa São Paulo, no ano passado, a Câmara Municipal paulistana aprovou o Plano de Metas (específicas para cada área da administração) como emenda à Lei Orgânica do Município. A atual administração entregou no último 31 de março o seu plano, no qual há vinte itens relacionados à mobilidade.

“São Paulo cresceu de forma desordenada e, como toda grande capital, sempre terá trânsito”, argumenta o secretário municipal de Transportes, Alexandre de Moraes. Ele acumula também a presidência da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e é gestor da SPTrans, empresa que administra o transporte público da cidade. O homem-trânsito na maior metrópole brasileira está diante de um dilema em que muitas soluções convencionais tornariam o problema ainda maior.

Colocar mais ônibus nas ruas apenas aumentaria o trânsito. Abrir mais vias para os carros significaria criar futuros bolsões de congestionamento. Fazer restrições ao automóvel particular, como o pedágio urbano de Londres ou de Estocolmo, segundo o secretário, não funcionaria, pois o transporte público não atenderia à demanda.

Mesmo com a crise econômica mundial e o congelamento de verba para a área, estado e município prometem destinar 5 bilhões de reais a obras que dobrarão as linhas do Metrô até 2012. Moraes também aposta em corredores de ônibus, e diz que 4 bilhões de reais serão investidos na área, com prioridade para os de Expresso Tiradentes, Celso Garcia e M’Boi Mirim. Também menciona uma alteração estrutural no trânsito: “O Rodoanel vai mudar de forma significativa o trajeto dos veículos pesados na capital. Essa medida terá um impacto gigantesco nas marginais e em avenidas como a Bandeirantes”.

Na esteira de São Paulo vêm os problemas viários das principais capitais brasileiras. Concebida no final da década de 1950, a construção de Brasília foi acompanhada pela chegada e expansão da indústria automobilística. Toda a sua estrutura é voltada para a utilização de carros, o que pode ser percebido pela largura de suas vias. Não há concessões para os que se aventuram a ser pedestres ou ciclistas. Mesmo com 2,4 mil ônibus e 21 estações de Metrô, o transporte público ainda não faz parte do cotidiano dos brasilienses, principalmente das classes sociais mais altas, residentes no Plano Piloto.

Diferentemente da maioria dos vizinhos, a fonoaudióloga Uliana Pontes, de 28 anos, prefere utilizar transporte público para ir de casa até a Esplanada dos Ministérios, onde trabalha. Ela mora no Plano Piloto e leva entre 15 e 20 minutos no trânsito. “No meu bairro há muitas opções de ônibus. Isso facilita bem. Já tive carro, mas vendi. Além da manutenção ser cara, em Brasília falta espaço para estacionar”, diz. Quem usa transporte coletivo na cidade costuma reclamar do tempo de espera no ponto de ônibus. Mas a fonoaudióloga driblou o problema com facilidade: “Sei o horário dos ônibus que passam perto da minha casa, me planejo com tempo e nunca espero muito”.

Com 3 milhões de habitantes, 700 mil carros e 2,5 mil ônibus diariamente nas ruas, Salvador também tem problemas sérios de mobilidade urbana. O caos é fruto da dispersão urbanística das residências, do comércio e da centralização de serviços. A cena diária de congestionamentos é comum.

A professora universitária Luciana Neto, de 30 anos, saía de casa às 6h30 da manhã e gastava uma hora para chegar ao bairro da Graça, onde trabalha. “Tinha sorte porque pegava o ônibus no início do itinerário e conseguia sentar”, diz. Mas, optando por mais rapidez e conforto, ela se rendeu ao carro. Hoje faz o mesmo percurso em cerca de 40 minutos. “O tempo que eu perdia esperando o ônibus, gasto para outras coisas.” Ainda assim, a professora destaca as vantagens dos tempos que usava o serviço público de transporte. “Com o ônibus mais vazio era possível ler um livro, descansar e até dar uma dormidinha. E eu não precisava procurar lugar para estacionar o carro. O desgaste era menor”, acredita.

A jornalista gaúcha Silvia Marcuzzo, de 39 anos, quase não usa o carro. Após morar alguns anos em Brasília, voltou a Porto Alegre decidida a não depender do automóvel. “Optamos por morar numa região central próxima ao trabalho e que tivesse serviços essenciais”, diz. Na maioria dos seus deslocamentos, ela usa o transporte público. Na capital gaúcha, os ônibus têm ar condicionado. Há paradas espalhadas por toda a cidade, ainda que faltem algumas linhas para interligar os bairros. Apesar das deficiências, ela lista as vantagens da opção. “A cidade fica diferente quando abandonamos a direção do automóvel. As árvores floridas aparecem ainda mais. Quando dirigimos, tudo o que vemos são os motoboys apressados, os motoristas indelicados e o tráfego.”

Por sua vez, a capital paranaense tem um modelo de transporte público que serve de referência Brasil afora. Em Curitiba há corredores de ônibus na maioria das vias principais, existem as linhas distribuidoras nas extremidades do sistema, e o usuário paga uma única tarifa quando viaja, não importando a distância percorrida. Mais de 20 mil passageiros são transportados por hora, e o sistema é utilizado por 85% da população.

O modelo curitibano inspirou um sistema que se tornou referência na América Latina: o Transmilênio, da Colômbia. O projeto está em funcionamento desde 2000 e consiste em 80 quilômetros de corredores por onde circulam mais de mil ônibus. O sistema é capaz de transportar 47 mil passageiros por hora, que pagam tarifa única, independentemente da distância percorrida. O Transmilênio custou 3,5 milhões de dólares por quilômetro. Isso equivale a apenas 5% do custo do Expresso Tiradentes paulistano. O antigo Fura-Fila é uma promessa eleitoral que se tornou um mico e, apesar de inaugurado, resultou apenas em uma pequena parte do projeto original. Como se vê, a mobilidade urbana dá muitas voltas, nem sempre em direção às mudanças necessárias.

Fonte: Carta Capital

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