segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O novo socialismo

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por Márcia Pinheiro

“A transformação dos Estados Unidos em USSRA (Estados Unidos Socialistas da República da América) já ocorreu. Os camaradas Bush, Paulson e Bernanke simplesmente socializaram os prejuízos dos ricos.” Esta é a síntese do mordaz colunista de CartaCapital e professor da New York University, Nouriel Roubini, sobre o enterro dos cânones neoliberais e a operação salva-bancos desencadeada pelo Tesouro americano.

O economista enumera a série de atitudes para tirar o sistema do atoleiro, que terá um custo fiscal a ser pago pelos contribuintes dos países envolvidos: o resgate das companhias hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mack, a ajuda financeira aos credores do banco de investimentos Bear Stearns, a compra da maior seguradora mundial, American International Group (AIG), e os bilhões de dólares emprestados a preço de banana ao mercado na tentativa de preservar o santuário da riqueza americana.

Na quinta-feira 18, os bancos centrais mundiais despejaram mais caminhões de dinheiro no sistema, na tentativa de evitar o temor de quebradeira em cascata. O Fed anunciou mais 180 bilhões de dólares de linha de financiamento. O Banco da Inglaterra, 45 bilhões de dólares. O Banco Central Europeu, 55 bilhões, acompanhados de iniciativas semelhantes por seus pares asiáticos.

O paradoxo é que toda essa confusão foi criada por um bando de fanáticos que rezavam pela cartilha ideológica de um laissez-faire descontextualizado historicamente, ao impor suas próprias regras, regulação e supervisão. Tudo sob a complacência dos hoje “neobolcheviques” Henry Paulson (Tesouro), Ben Bernanke (Federal Reserve) e George Bush (Presidência), além das agências de classificação de riscos. Sem contar Alan Greenspan, antecessor de Bernanke, cultuadíssimo nos anos de forte expansão do PIB dos EUA, mas cuja leniência na “era dourada” permitiu que esta bolha crescesse a uma proporção assustadora. Não por acaso, a maior crise desde a Grande Depressão da década de 30 ocorreu na administração republicana de George W. Bush. E as respostas intervencionistas também. “Quem antes no governo apoiaria a estatização com tanta ênfase?”, provoca James Galbraith, professor da Universidade do Texas. Assistimos ao retorno do Estado forte nas atividades econômicas, com Bush no papel de porta-voz do novo socialismo.

Quanto ao futuro, é óbvio que não teremos um novo boom de crédito, diz o economista. “O futuro está nas mãos de um Estado responsável, especialmente no que se refere a políticas fiscais conseqüentes.” Ninguém nem discute mais a ausência de um Estado forte, afirma. “John McCain vai perder as eleições, porque continua a distribuir conselhos, como os republicanos faziam há vinte anos ao Brasil. Não haverá tempo de mudar o discurso agora”, aposta. Em tese, Barack Obama ganha eleitoralmente com o aprofundamento da crise. Acontece que nem os democratas parecem saber o que fazer para sair da enrascada. As intervenções públicas de Obama têm sido tímidas, até agora. Pouco incisivas.

Entre o incerto futuro e a premente realidade de curto prazo, há péssimos sinais. As vendas no varejo americano caíram pelo segundo mês consecutivo em agosto. A queda foi de 0,3%, após uma redução de 0,5% em julho. Na comparação com o mesmo mês de 2007, as vendas recuaram 0,4%.

Se excluídas as concessionárias de automóveis, as vendas no varejo caíram 0,7%, o maior tombo neste ano. As dos postos de gasolina apresentaram a primeira queda em cinco meses, de 2,5%. O recuo deveu-se à retração de quase 7% no preço da gasolina.

Para se ter uma idéia de como estão os gastos das famílias, que correspondem a dois terços do PIB americano, devem-se excluir os setores de combustíveis, materiais para construção e automóveis. Segundo essa medida, as vendas no varejo cresceram à taxa anualizada de 5,4% no período de três meses encerrado em agosto.

Em julho e junho, as altas tinham sido de 7,8% e 8%, respectivamente. A desaceleração das vendas indica que os efeitos do pacote fiscal (devolução de impostos pelo governo Bush) estão se dissipando e prevalecem os fatores negativos ao consumo (aumento do desemprego e crédito apertado). Outro dado relevante é o índice de Confiança do Consumidor, apurado pela Universidade de Michigan. Caiu de 78,4 em janeiro para 63 em agosto, mau augúrio para o futuro, um sinal de que os americanos estão menos dispostos a gastar.

É óbvio que uma crise de tais dimensões nos Estados Unidos, que atinge a Europa e a Ásia, trará repercussões no Brasil. Além da corrente financeira, que tende a minguar, os EUA continuam sendo nossos maiores compradores, com 2,411 bilhões de dólares em média ao mês. Por enquanto, os investidores preferem migrar para os títulos do Tesouro dos EUA e para o ouro, considerados investimento seguro. Na quarta 17, o metal disparou 9% em Nova York, e chegou a 850,50 dólares a onça-troy. O rendimento dos títulos americanos de vencimento mais curto recuou ao nível de 1941, quando Londres era bombardeada pelos nazistas, informa o Financial Times.

Mudaram os tempos, mas não o padrão, quando o assunto são os emergentes. Até que os donos do dinheiro tenham uma dimensão mais precisa do que está ocorrendo, sobretudo os efeitos da crise americana sobre a China, tenderão a não tomar decisões de investimento.

De todo modo, é inegável que, desta vez, o Brasil está mais arrumadinho, com contas internas saudáveis, crédito em crescimento e, principalmente, possui um sistema financeiro extremamente sólido. Apesar de a bolsa brasileira registrar as maiores quedas dos preços das ações nos últimos dias, o impacto sobre a vida dos consumidores e das empresas, ao menos neste ano, será limitado.

A origem de toda essa turbulência é notória, mas não custa relembrar. A desregulamentação e a falta de supervisão são as palavras-chave. Sobretudo sob a batuta de Greenspan, o Fed praticou taxas de juro muito baixas, negativas até, o que impulsionou o mercado de crédito. Cheio de planilhas, MBAs e inventividade, os estrategistas bolaram toda a sorte de investimentos que tinham como garantia as dívidas dos mutuários. Só que a bolha imobiliária estourou e bilhões de dólares que os americanos imaginavam ter viraram pó da noite para o dia.

A sexta-feira 12, pré-catástrofe, foi emblemática. A região de Wall Street foi invadida por limusines pretas, à hora do rush. Fora convocada uma reunião de emergência, para discutir a dificílima situação financeira dos bancos de investimento Lehman Brothers e Merrill Lynch. O evento foi secreto, pero no mucho. Todo o mercado esperava soluções mágicas das autoridades responsáveis pela fiscalização, organização e cumprimento de regras das instituições. Não houve mágica que desse jeito na balbúrdia instalada nas bolsas mundiais.

Entre as autoridades presentes, estavam o presidente do Federal Reserve de Nova York, Timothy Geithner, Henry Paulson, e o presidente da Security Exchange Commission (SEC, espécie de CVM americana), Christopher Cox. Segundo The Wall Street Journal, também participaram do encontro, que se estendeu até domingo à noite, o principal executivo do Morgan Stanley, John Mack, e o homem forte do Merrill, John Thain. O mercado acompanhou o passo-a-passo das negociações. Do sucesso ou fracasso da empreitada dependia o ritmo dos pregões, na segunda 15. Por insistência de Paulson, desta vez o papai Estado não seria tão generoso. Não tirou um tostão do bolso para salvar o Lehman. A fantasia à Disney sucumbiu à realidade nos Estados Unidos. Os castelos ruíram.

Espécie de templo do livre-mercadismo nos anos 90, sempre prontos a dar lições ou punir governos e empresas que não seguissem à risca suas cartilhas, os antes poderosos bancos de investimento acabaram de pires na mão. Instituições centenárias, como o Lehman Brothers (página 33) não resistiram. Outras tantas, prevê o próprio mercado, ainda vão desabar.

Até domingo 14, o Fed e os bancos centrais mundiais fizeram mundos e fundos para evitar uma crise sistêmica, de liquidez e confiança – os dois pilares fundamentais do sistema financeiro. Mas o jogo mudou justamente naquele fim de semana. Não houve acordo para o salvamento do Lehman, pois o governo avaliou que o poço não teria fim.


Não sem razão. O Fed já havia despejado bilhões de dólares no resgate do Bear Stearns em julho de 2007 (comprado na bacia das almas pelo JP Morgan Chase) e ter estatizado as duas maiores agências hipotecárias americanas Fannie Mae e Freddie Mac.

Quanto ao Merrill Lynch, encontrou o Bank of America como interessado, que pagou 50 bilhões de dólares pelo concorrente. Na fila dos moribundos, restava a maior seguradora mundial, a American International Group (AIG). Na terça-feira 16, as ações recuaram 61% diante da incerteza de que teria o mesmo desfecho do Lehman. Após o encerramento dos negócios, o Federal Reserve comprou 80% da seguradora, por 85 bilhões de dólares.

No encontro do famoso fim de semana, tanto o Fed quanto o setor privado tomaram algumas ações para tentar contornar a crise. Do lado do governo, segundo compilação do Banco Santander: 1. O Fed ampliou o leque de garantias que os bancos podem apresentar como se eleger às linhas especiais de crédito oferecidas pela instituição. 2. Aumentou o volume das linhas de liquidez destinadas aos bancos de investimento de 175 bilhões de dólares para 200 bilhões de dólares. 3. Aumentou a freqüência dos leilões de recompra de títulos, de quinzenal para semanal. O Banco Central Europeu também afirmou que ofereceria linhas de crédito ao longo da semana.

O mercado achou pouco. Sabia do tamanho da encrenca nascida da euforia desenfreada dos empréstimos imobiliários americanos. As quedas foram generalizadas, na segunda-feira 15, e comparáveis ao desespero ocorrido depois dos ataques às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. A Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) teve o pior desempenho, com um tombo de 7,59%. Em Nova York, a queda foi de 4,42%. Na Rússia, baixa de 6,18%.

Do lado do setor privado, as negociações tiveram o objetivo de consolidar as posições em derivativos do Lehman para reduzir o risco de contrapartida. Além disso, um grupo de dez bancos estabeleceu um fundo de 70 bilhões de dólares (7 bilhões de dólares cada) para uso imediato. Qualquer integrante desse grupo poderá tomar emprestado até um terço do saldo do fundo.

Na Ásia, o Banco Central da China surpreendeu e informou a redução do juro de referência para empréstimos de um ano em 27 pontos-base a partir de terça 16, e cortar o compulsório para instituições financeiras menores a partir de 25 de setembro, para “ajudar a resolver importantes problemas” na economia para que ela “continue a desenvolver-se de maneira rápida e estável”. Segundo comunicado do BC chinês, o juro de referência para depósitos não será alterado. Trata-se do primeiro corte na taxa para empréstimo desde 2002 e a primeira redução do compulsório desde meados de 2006.
Apesar de tênues, já há sinais de desaceleração do PIB do país.

Na terça 16, com o mercado dividido, o Fed anunciou sua decisão sobre a taxa de juro. Surpreendendo a ala que queria um alívio do custo do dinheiro, o comunicado do Banco Central americano disse que as dificuldades nos mercados financeiros aumentaram significativamente, assim como o mercado de trabalho mostra sinais de fraqueza. As condições restritivas de crédito, a queda do preço dos imóveis e o crescimento fraco das exportações devem constranger o crescimento. “O tempo e o crédito, combinado com as medidas adotadas para aumentar a liquidez, deverão ajudar a promover um crescimento econômico moderado.” Ou seja, Ben Bernanke não quis ganhar a alcunha de um novo soprador de bolhas, a exemplo do seu antecessor.

Na avaliação da LCA Consultores, “um dos possíveis motivos pelos quais o Fed não reagiu à deterioração adicional das condições financeiras com uma redução de juros é o fato de sua taxa primária se encontrar em nível real negativo. Nessas circunstâncias, a eficácia de uma nova redução de juros tenderia a ser limitada, e a decisão poderia ser vista pelos mercados como um sinal de que o sistema financeiro se encontra ainda mais fragilizado do que se avaliava”.

Os contratos futuros dos Federal Funds, no dia seguinte, passaram a embutir 100% de chance de um corte na taxa básica de juro pelo Fed na próxima reunião, em 28 e 29 de outubro, em meio a sinais de que os investidores não enxergam no horizonte a estabilização do sistema financeiro e que é preciso irrigar mais as instituições com dinheiro barato. “Muitos bancos ainda vão quebrar”, antevê Roubini, cujas previsões sombrias têm sempre acertado no alvo.

Atrás do prejuízo, a Security Exchange Commission (SEC, xerife do mercado de capitais dos EUA) anunciou, na quarta 17, medidas para combater o abuso na prática de vendas a descoberto. Ou seja, quando o vendedor oferece o papel sem tê-lo em carteira. Exigiu que as corretoras entregassem os títulos tomados emprestado para a realização das vendas na data de liquidação, três dias depois da transação. Do contrário, estarão sujeitas a punições. “É a crise mais séria que atingiu os EUA desde 1930”, diz Trevor Evans, professor de Economia da Universidade de Berlim. Segundo ele, os problemas do Lehman e da AIG estão longe de ser localizados. “Aproximadamente 400 bilhões de dólares em empréstimos a mutuários inadimplentes são reconhecidos pelo Lehman.” Fora os não contabilizados, espalhados por outros bancos. Com a retração do consumidor americano, dificilmente haverá novas captações para reequilibrar o sistema, diz o economista. Pior, para o professor, não há país ou bloco econômico capaz de substituir os americanos. “Ao contrário. Os EUA estão vivendo além dos seus limites desde os anos 80. Isso significa importar menos de outros países. Fazer o americano entender que terá de consumir menos.” E pondera: “Estamos injetando incerteza na veia. O futuro raramente foi tão nebuloso”. Pessimista, Peter Moricy, da Universidade de Maryland, considera que o Lehman carrega apenas uma pequeníssima parte do lixo tóxico que tomou conta das carteiras de investimentos dos bancos americanos. Por isso, ele considera plausível que a parte saudável do banco seja adquirida por uma instituição sólida e os prejuízos diluídos pelo sistema financeiro. O que acontece hoje é “uma sirene de alarme”. “Cedo ou tarde, haverá o efeito dominó. Será inevitável que as estruturas e práticas financeiras retomem as normas conservadoras de vinte anos atrás”, afirma. O mundo ainda vive as conseqüências dos ataques às Torres Gêmeas em 2001. Inegavelmente, as coisas ficaram piores. A derrocada de símbolos do capitalismo financeiro neste setembro projetam um futuro igualmente ruim para o planeta. Ou, talvez, mais sombrio.

Fonte: Carta Capital

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