terça-feira, 30 de setembro de 2008

A crise econômica americana e a causa da revolução

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Depois de duas "segunda-feiras malditas" (Wall Street e sua mídia usam a politicamente incorreta "segunda-feira negra"), em 15 e 29 de setembro, a crise econômica nos Estados Unidos se impôs como o tema número um da atualidade. Número um para Washington, que tenta "salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas", na síntese perspicaz de Cesar Benjamin. Número um também para nós que nos empenhamos em superar o capitalismo.

Por Bernardo Joffily



Bush deixa o púlpito após coletiva: fim de festa

Os acontecimentos não só são complexos, com freqüência contraditórios, mas também vertiginosos. A derrubada do mega-Proer enviado pelo governo Bush ao Congresso, para a patética perplexidade de seu autor, o secretário do Tesouro Henry Paulson, é apenas a mais recente de uma série de bombas que parece não ter fim.

Complexidades 1 – economia

A crise nasceu no mercado imobiliário, com a jogatina tendo como objeto hipotecas de pagamento duvidoso – as hoje famosas subprime. Mas faz tempo que se estendeu numa metástase. Hoje, ameaça diretamente os "bancos-sombra", com ativos da ordem de US$ 10 trilhões nos EUA, em boa parte fictícios. Tende a contaminar o sistema dos bancos tradicionais, que soma outros US$ 10 trilhões. E já afeta a chamada economia real – indústria, agricultura, serviços –, só não se sabe em qual medida.

Tornou-se um lugar-comum comparar esta crise com a Grande Depressão de 1929. Esta representou mais de três anos de ladeira abaixo (seguidos por uma lenta e difícil recuperação, que em 1939 emendou na 2ª Guerra Mundial); cortou o PIB pela metade e puxou a taxa de desemprego para 25% nos EUA.

Mas justamente por isso a crise dos anos 30 feriu de morte a velha doutrina econômica liberal, que acreditava no mercado como o mais sábio dos reguladores. Colocou na moda a interferência do Estado, a partir do governo Franklin Delano Roosevelt e seu "New Deal" ("Novo Pacto", 1933), com base em políticas ditas keynesianas (do nome do economista britânico John Maynard Keynes, 1883-1943).

Washington tem portanto um know how de intervenção estatal que não era sequer cogitado em 1929. O Plano Paulson teria essa matriz se a Câmara não o tivesse rejeitado. O arsenal keynesiano ou pós-keynesiano à disposição de Washington modera as previsões sobre os efeitos da crise na economia real dos EUA e do mundo. Os vaticínios coincidem em que haverá recessão, mas nada que chegue perto dos anos 30: fala-se em uma duração de até 18 meses e uma queda de no máximo 5% ou 6% do PIB, custando no total a bagatela de US$ 2 trilhões.

Será? A prudência recomenda que se registre: duas semanas depois do crack da bolsa de NY em 29 de outubro de 1929, ninguém previu tampouco a depressão que estava por vir.

Complexidades 2 – política 1

Nas décadas da chamada ofensiva neoliberal, foi o keynesianismo que saiu de moda. Os adeptos do neoliberalismo garantiam que interferência estatal na economia só atrapalha e basta deixar que o mercado funcione sem peias para tudo se ajustar e vivermos no melhor dos mundos.

Esta foi a doutrina dominante a partir do governo Ronald Reagan (1981-1989). Foi a linha do longo reinado de 19 anos de Alan Greenspan no Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA). Foi até ontem a bíblia do governo Bush. Tem sido há décadas a pregação do senador John McCain.

Ora, o Proer de Bush-Paulson era um cavalo-de-pau nessa doutrina. Representava nada menos que a maior intervenção estatal da história – US$ 700 bilhões (ou meio PIB brasileiro) no total, em três parcelas, de US$ 250 bi, US$ 100 bi e US$ 350 bi. Só a ditadura dos interesses concretos sobre os mantos ideológicos que os revestem (e encobrem) explica que Bush – e seu candidato – tenham feito uma manobra de tamanha radicalidade sem corar nem pedir desculpas.

Complexidades 2 – política 2

Então o pacote Paulson representou uma autocrítica keynesiana não assumida da Casa Branca, mas naufragou porque os renitentes congressistas neoliberais decidiram por maioria manter a fé no mercado livre? Errado. Mais uma vez a realidade extrapolou de esquemas assim simplórios.

É verdade que foi com sotaque keynesiano que a presidente da Câmara, Nancy Pelosi defendeu o pacote: "Por tempo demais, oito anos, este governo seguiu uma ideologia de direita onde nada se faz, sem supervisão, sem disciplina, sem regulação", criticou a democrata de San Francisco, tida como a cidade mais "à esquerda" dos EUA.

É verdade igualmente que muitos conservadores da Câmara, na maioria republicanos porém também democratas, bombardearam o pacote com o discurso neoliberal que conhecem de cor e salteado: ''É uma expansão sem precedentes do poder federal, inaceitável, que não se pode permitir, que nossos filhos não podem aceitar e que nunca vimos na história deste país'', disse John Culberson, republicano do Texas.

Porém outros fatores influíram decisivamente para produzir a apertada maioria que derrubou o pacote (228 votos a 205), contra a vontade da Casa Branca, do ex-imperador Greenspan chamado às pressas de volta à ativa para afiançar o projeto, de McCain e Obama, da liderança democrata e republicana. A começar pelo puro e simples medo das urnas.

Em 4 de novembro não se elegerá apenas o sucessor de Bush; também se renovará a Câmara e o Senado. Alguns representantes terão votado contra por convicção ideológica neoliberal. Mas muitos foram movidos por temerem o que diriam os eleitores americanos, daqui a apenas um mês, caso aprovassem um pacote que as pesquisas dão como fortemente rejeitado pela opinião pública.

Porém as complexidades não param aí: a rejeição ao pacote Paulson deve-se em parte às crenças liberais enraizadas em boa parcela dos americanos médios; mas deve-se igualmente a uma profunda indignação contra o que foi percebido – com perspicácia – como uma armação dos "gatos gordos de Wall Street" para descarregar a crise no lombo do "americano comum".

Por isso, ao lado dos votos contrários por ojeriza a qualquer intervenção estatal, houve nesta segunda-feira um voto contra um pacote que ajuda os ricos banqueiros (com a folha-de-parreira de limitar os vencimentos dos executivos ajudados a US$ 400 mil por mês, "apenas" R$ 65 mil reais por mês, ao câmbio de ontem) e deixa na mão os trabalhadores que estão perdendo suas casas, seus empregos e seus planos previdenciários.

O insuspeito The Wall Street Journal, apoiador do pacote Paulson, registrou: "Outros votos contra foram dados por congressistas dos distritos eleitorais mais pobres, inclusive dos habitados por negros e pobres".

A esquerda contra o pacote

A esquerda militante dos EUA, que o sistema político-eleitoral mantém fora do Congresso, condenou duramente o Proer de Bush-Paulson. Em sua agitação que se intensifica, ela opõe aos privilégios de Wall Street as urgentes demandas da "Main Street" (em uma tradução livre, a economia real; ao pé da letra, é a "Rua Principal", existente em qualquer cidadezinha americana e onde costumam ficar os pequenos negócios locais).

"Neste drama da vida real, Bush e Paulson fazem John Dillinger, o legendário gângster e assaltante de bancos do tempo da Depressão, parecer um escoteiro", escreveu Sam Webb, presidente do Partido Comunista dos Estados Unidos, em artigo que o Vermelho publicou (clique aqui para ver). Em outro texto, Webb agrega: "Defendemos um plano que não apenas restaure a liquidez do mercado, mas também enfoque a urgente crise na main street e reavive a economia como um todo".

A versão eletrônica do jornal Workers World (http://www.workers.org), de outra corrente da fragmentada esquerda marxista americana, deu destaque para um abaixo-assinado virtual, dirigido "ao presidente Bush, aos candidatos Obama e McCain, aos congressistas, ao secretário do tesouro, Paulson, ao presidente do Fed, Bernanke, e à mídia. O curto texto e a plataforma falam por si:

"Socorram a main street, NÃO a Wall Street!"

"Dezenas de milhões de trabalhadores e gente pobre se defrontam com a mais horrenda crise econômica desde a Depressão dos anos 30. Mas nosso governo planeja uma ajuda do Tesouro americano aos banqueiros de Wall Street. Tudo que os políticos oferecem às pessoas que estão perdendo suas casas, empregos, sistemas de saúde, educação e aposentadoria são cortes cada vez maiores nos serviços sociais vitais.

Basta. Eu digo NÃO a esta injustiça. Não à ajuda aos banqueiros de Wall Street. Em vez dela, reivindico as seguintes medidas de emergência:

1. Moratória das execuções de hipotecas de residências e dos despejos.

2. Congelamento de todas as demissões e expansão do seguro desemprego.

3. Congelamento dos cortes nos serviços públicos e rebaixamento dos preços dos combustíveis, alimentos e serviços.

4. Proteção para as aposentadorias e poupanças dos trabalhadores – tirem as mãos da Seguridade Social.

5. Cancelamento das dívidas dos trabalhadores e da gente pobre – não à execução de moratórias ou embargo de salários.

6. Moratória dos cortes no orçamento e em todos os programas sociais como os de saúde, educação, transporte público, programas para jovens, idosos e veteranos de guerra."

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Um sorriso de "eu não disse?"

Vistas as muitas complexidades da situação concreta de hoje, arrisquemos um olhar para o futuro. O que ficará desta crise?

Diante das dimensões do colapso econômico, desta vez com epicentro precisamente em Wall Street, o coração das finanças trilionárias, é fatal que nós, adeptos da superação socialista da ordem burguesa, não refreemos um sorriso de "eu não disse?". Em horas assim, a cegueira, burrice e impiedade do Deus Mercado aparecem de corpo inteiro. São fatos que convencem mais e melhor do que milhares de panfletos ou discursos anticapitalistas.

A crise em curso, especificamente, é um murro no queixo de três décadas de discurseira neoliberal que todos conhecemos. É um espetáculo reconfortante para os defensores do socialismo assistir a ícones do time adversário – um Bush, um Greenspan, um McCain, um Paulson – à beira de um ataque de nervos porque a Câmara rejeitou um pacote que representa justo o contrário do que eles sempre pregaram, com a solenidade de apóstolos das Santas Escrituras da economia política.
Um equívoco difundido.

Tudo bem. Mas não se deve esquecer que a crise econômica, por si, nunca conduziu nem conduzirá ao desmoronamento do sistema e nem muito menos à sua superação socialista. É fato que ela reflete em tons mais vívidos as limitações e contradições do sistema. Mas esperar dela mais do que isso é um equívoco, lastimavelmente bastante difundido.

Para refutar quem crê em uma catástrofe econômica que leve o capital a entregar os pontos de mão beijada, é bom recorrermos de novo ao exemplo da Grande Depressão. No plano político, que é onde as coisas se decidem, ela não abriu as portas para a expansão do socialismo. Longe disso.

Socialmente, os anos 30 foram de ofensiva do capital contra os trabalhadores; e politicamente assistiram à apoteose do nazifascismo, a forma mais terrorista de ditadura de classe da grande burguesia. Nos EUA, onde o fascismo não se impôs e o New Deal pode ser visto como um êxito reformista (muitos acusaram Roosevelt de "comunismo"), as reformas nunca triscaram o regime capitalista propriamente. Passada a Depressão e a Guerra Mundial, os EUA emergiram para a Guerra Fria como o grande bunker planetário do capital.

Não é inevitável que a crise econômica de 2008 siga o mesmo script dos anos 30 em política. Mas tampouco existe a menor garantia do contrário.

O socialismo não é fruto da crise econômica capitalista. É filho do desenvolvimento capitalista, das contradições que ele acarreta e das forças que impulsiona. É o que mostram as grandes revoluções socialistas do último século, a começar pela russa de 1917 e a chinesa de 1949, que tiveram como te
atro duas sociedades em franca ascensão do ponto de vista burguês.

A superação revolucionária do capitalismo depende antes de mais nada da força social e política acumulada pela classe dos trabalhadores assalariados pelo capital. Do amadurecimento de uma crise revolucionária – ou seja, uma crise social e política, não necessariamente econômica –, onde, conforme a formulação clássica, os "de baixo" já não querem ser governados como antes e os "de cima" tampouco conseguem governar à moda antiga. E, por fim, de uma direção capaz de conduzir a sociedade da crise revolucionária à revolução vitoriosa. Tudo isso são processos que acontecem fora da esfera econômica.

Fonte: Vermelho

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