por Claudio Leal
O ex-secretário nacional anti-drogas Wálter Fanganiello Maierovitch se tornou uma referência nos estudos sobre a criminalidade transnacional, no Brasil. Desembargador aposentado e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone, Maierovitch se dedica à compreensão das inúmeras faces, e intrincados labirintos, de organizações mafiosas.
Procurado por estudantes, magistrados, promotores e delegados, para esclarecer dúvidas em torno de temas que vão desde a espionagem à guerra às drogas - e o que pode estar por trás dela -, ele resolveu reunir em livro seus principais textos, em grande parte publicados na revista Carta Capital (onde tem uma coluna há oito anos), na Folha de S. Paulo, no Correio Braziliense e nesta Terra Magazine.
A seleção de artigos virá em forma de uma trilogia: "Na linha de frente pela cidadania". O primeiro livro aborda a criminalidade transnacional e será lançado na próxima segunda-feira, 29 de setembro, às 19 horas, na sede da Casa Dona Veridiana (Av. Higienópolis, 18, São Paulo). Já estão prontos os volumes que darão seqüência à série. Em seguida, estudos sobre o fenômeno das drogas e o terrorismo.
Em entrevista a Terra Magazine, Wálter Maierovitch avalia a transformação da criminalidade em redes complexas. Recorre a exemplos vários - da Itália ao Brasil.
-... Essa criminalidade de matriz mafiosa não assalta mais banco. Ela põe o dinheiro no banco e se serve de toda a rede de telemática.
Para Maierovitch, o caso Daniel Dantas oferece enredo para compreender o jogo do controle de poder, principalmente com os desdobramentos da Operação Satiagraha, da Polícia Federal.
- Nisso você tem lutas dentro do Estado, pode até ter divisões. Mas tem a meta de controle de poder.
Leia a entrevista:
Terra Magazine - Em "Na linha de frente pela cidadania", o senhor ordena seus estudos sobre a criminalidade contemporânea?
Wálter Maierovitch - Vou soltar três livros. O primeiro sobre criminalidade transnacional. O outro será sobre a geopolítica e a geoestratégia das drogas. O terceiro sobre o terrorismo. Esses três vão fazer parte da série "Na linha de frente pela cidadania". Lanço agora "A criminalidade dos potentes". A meta é o conhecimento do fenômeno. Sem conhecê-lo, não se pode legislar e não há possibilidade de a polícia investigar, porque é um fenômeno que não observa limitações de fronteiras. É uma criminalidade em rede, onde qualquer outra organização se pluga a ela. É preciso saber, por exemplo, como a Colômbia, que não tem insumos químicos, faz cloridrato de cocaína, que precisa de insumos químicos... Como é que a Colômbia consegue pôr cocaína em toda a parte do mundo? Como é que o vendedor da esquina de sua casa tem cocaína? Isso precisa ser visto num plano planetário.
Se não há barreiras geográficas ao crime, como se dá a interligação de organizações mafiosas?
A criminalidade organizada, sem fronteiras, atua em rede - como uma rede de neurônios. Qualquer organização criminosa, e até o camarada da esquina, sabe onde se conectar na rede. Essa rede tem também quadrilhas, bandos, mas tem também doleiros. Agora, o que esse livro está tratando é que acima dessas organizações de matriz mafiosa, acima delas está sendo identificado o que se chama na Itália de "a criminalidade dos potentes". É como se fosse um espetáculo de fantoches, onde tivesse aquele que mexe os cordéis - e que, evidentemente, não é conhecido ou quase sempre não é alcançável. Ela se apóia em quê? Na corrupção sistêmica, que ela constrói, incentiva e busca vantagens; o segundo é a procura do controle do poder; e o terceiro é o emprego de métodos mafiosos.
Esse tipo de criminalidade não tem um aspecto visível?
Mas passa a ser visível. Vou dar um caso do Brasil e de fora do Brasil. Depois da Segunda Guerra Mundial, o Partido da Democracia Cristã governou a Itália por quase 40 anos. Nesse partido, o Giulio Andreotti foi sete vezes primeiro-ministro. Uma outra vez ele ocupou o ministério. Foi sete vezes chefe de governo. O que se apurou? Quando ele governava, estava associado à máfia, à Cosa Nostra, siciliana, a organização criminosa mais potente do mundo. Veja o aconteceu. Quando ele foi julgado em primeiro grau, foi absolvido. Os jornais deram o caso. Tem um programa de televisão na Itália, de grande audiência, chamado "Porta a porta". Há uma espécie de sala de visita, onde alguém toca a campainha, entra e começa a participar da discussão. Um programa especial do "Porta a porta" foi sobre a absolvição do Andreotti. Aconteceu que o Ministério Público apelou da decisão e ocorreu a condenação do Andreotti.
Aí você começa a observar um silêncio na mídia. E observa que não teve um programa "Porta a porta" sobre a condenação. E é uma decisão muito mais importante. Porque uma é de primeiro grau, a outra é de apelo. Teve recurso à Corte de Cassação, o Supremo Tribunal de lá. A Corte de Cassação manteve a condenação do Andreotti por associação à máfia. Mas Andreotti tinha mais de 80 anos e, como estave associado no período em que governava a Itália, ocorreu a prescrição. O que é a prescrição? Foi confirmada a condenação, foi verificada a pena, se chegou a uma quantidade de pena - e pela quantidade, verificou-se que o caso estava prescrito. Se ele fosse absolvido, não teria prescrição. Veio em função da condenação. Mas se você perguntar a qualquer pessoa na rua o que aconteceu com Andreotti, as pessoas dizem que ele foi absolvido. Não teve o "Porta a porta" (risos).
E os outros desdobramentos?
O Giulio Andreotti estava associado à máfia, mas, na realidade, se você pensar na criminalidade dos potentes, verá que quem está nesse estamento controla as organizações criminosas, elegendo seus representantes para o parlamento. Na Sicília, por exemplo, Giulio Andreotti elegia os Salvo Lima - eles eram primos. Tinha toda uma discussão de que a máfia não existia, era uma ficção...
Como o senhor percebe as transformações dos procedimentos da máfia italiana, na última década, em termos de estrutura e estratégia?
É que depois de 1992, com a morte dos juízes (Giovanni) Falcone e do (Paolo) Borselino, dinamitados, e de 1993 - quando a máfia declara guerra ao Estado italiano e começa a bombardear em Milão, Roma e Florença -, aí há a necesidade de reação. Mas não tem mais o Giulio Andreotti no poder. Veja: com Giulio Andreotti, o Totò Riina, chefão da máfia, ficou mais de 20 anos foragido sem tirar os pés da Sicília. O segundo dele, Bernardo Provenzano, ficou 42 anos foragido sem tirar o pé de lá. Então, você tem um sistema mafioso de poder. E se descobre agora que, acima deste sistema, pra ele se manter, existem grupos que controlam e dão impunidade às máfias. É aí que está a criminalidade dos potentes, aqueles que asseguram a impunidade ao crime organizado transnacional de modelo mafioso.
No Brasil, o senhor identifica algo semelhante?
Sim, o exemplo claro é o (banqueiro) Daniel Dantas. Ele consegue participar da privatização, tendo uma procuração pra representar fundos de pensão, num processo absolutamente estranho. Porque ele não tinha potencial econômico algum pra se enfiar nesse ramo. Precisou de dinheiro de fundos de pensão, o Estado lhe propicia isso. Participa da privatização (das teles), obtém vantagens, continua administrando até ser cassada a procuração. Mais do que isso, descobre-se que discos rígidos, que revelam todo esse processo de privatização, não podem ser abertos por decisão judicial. Por decisão do Supremo Tribunal Federal da Ellen Gracie.
Um contra-senso?
É como se eu matasse uma pessoa, o cadáver ficasse dentro do apartamento, e eu tivesse uma autorização judicial da Ellen Gracie pra polícia não entrar. O argumento que ela dá, na decisão, é mais estranho ainda. Ela diz que a apreensão daqueles discos rígidos se deu na apuração de grampos, pra verificar se Daniel Dantas podia grampear alguém. Ora, a Lei Processual Penal fala dos crimes conexos. Quando se está apurando o homicídio de João, se você encontrar a prova de que o mesmo assassino matou Antonio, José ou assaltou um banco, você não vai ignorar. Na visão dela, sim. E não deixou abrir os discos rígidos. O mesmo Daniel Dantas que consegue no segundo habeas corpus um foro privilegiado. Ele salta instâncias e vai ao Supremo. E o presidente do STF dá uma liminar sem consultar a Corte.
Em 48 horas...
A primeira ainda se pode discutir. Mas a segunda, não. Não é nem do Judiciário, é improbidade administrativa. Daí a minha tese do impeachment. E veja a reação do ministro (Nelson) Jobim, que sustenta uma mentira com relação às escutas, ao grampo, pra derrubar o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e não acontece nada.
Há um processo de divisão do Estado?
Acho que é o segundo pilar, o controle do poder. Nisso você tem lutas dentro do Estado, pode até ter divisões. Mas tem a meta de controle de poder. Jobim, por exemplo, tem no seu currículo o fato de ter escrito, em livro, que ele alterou a Constituição. Como deputado constituinte (de 1988), ele escreveu vários artigos que não foram mandados aos seus pares, que não foram aprovados. E invoca como testemunha Ulysses Guimarães, que já tinha morrido. Daí ele inventa que o Ministério Público não pode investigar... Era a tese dele quando era ministro do Supremo. O Código de Processo Penal é de 1940, a Constituição é de 88; ninguém nunca inventou isso, só o Jobim, querendo tirar o MP da investigação. Na investigação por inquérito, o destinatário é o MP. Jobim quer agora também a censura à imprensa, em casos de vazamento de informações, de notícias. Mas ninguém o derruba.
Numa rede como a investigada pela Polícia Federal, na Satiagraha, há essa tendência de se descobrir algo mais amplo, ligado a corporações? Esse é um modelo aplicável a esse caso?
Veja bem, pode haver o envolvimento dele (Daniel Dantas) com o estamento que está acima. Mais do que isso, a atuação que ele tem em lutas contra corporações como a Telecom Italia. Que passa a ser uma guerra. Ele deu um baile na Telecom Italia quando começou a espioná-la. Depois a Telecom decidiu espionar também ou ter uma paridade em armas. Ele contrata uma Kroll no Brasil, que está atuando até agora.
O livro aborda investigações desse nível?
Na Itália, há poucos meses atrás, o governador da Sicília foi condenado em primeiro grau por ter favorecido a máfia em licitações para construções de obras para serviços médico-sanitários e contratos com clínicas privadas. O que ele fez? Renunciou. Mas dois meses depois ele se lançou candidato a senador e foi eleito. E tem todo esse fenômeno de lavagem de dinheiro. Por exemplo, o livro mostra como a Camorra controla a moda. Tem um episódio comprovado de que Angelina Jolie, quando apresentou um Oscar, usou um modelo feito pela Camorra. Pelos estilistas da Camorra. Aí você tem uma hipocrisia. Por que as grandes grifes se associaram à Camorra? Porque as grifes, pra não entrarem na legislação protetora trabalhista, terceirizam. E terceirizam na Camorra, que tem os melhores contratos, os melhores estilistas. O que faz uma grande grife? Encomenda 500 peças, porque ela sabe que vai vender. O que faz a Camorra? Faz cinco milhões de peças. Com qualidade, pra que a grife não reclame.
Beira a ficção...
O livro mostra esse fenômeno pra que as pessoas estejam informadas. Os empresários que não se associam à criminalidade organizada sofrem uma concorrência desleal. Veja se você consegue ter uma fábrica de guarda-chuva em São Paulo, por exemplo. Não consegue. Porque, em dias chuvosos, há camelôs vendendo em todas as esquinas guarda-chuva chinês, sem impostos, sem nada. Ninguém aguenta essa concorrência. Tanto que não tem mais fábrica de guarda-chuva.
O senhor vê, no Brasil, uma reação à modernização do combate ao crime? Ele não precisa ser constantemente modernizado?
Sim, está lá no livro, entre outras coisas, o exemplo de uma especialista. Ela diz que a criminalidade organizada prefere hoje o mouse à metralhadora. A criminalidade precisa lavar esse dinheiro sujo pra reempregá-lo em atividades formalmente lícitas. É aí que está o pulo do gato. Vou mais longe, até, dizendo o seguinte: essa criminalidade de matriz mafiosa não assalta mais banco. Ela põe o dinheiro no banco e se serve de toda a rede de telemática.
Fonte: Terra Magazine
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