A violência exercida por grupos paramilitares na última sexta-feira (29) contra setores humildes do estado boliviano de Santa Cruz tem um triplo significado: mostra o racismo com que a ultra-direita busca recuperar o espaço perdido, é um sinal de que as classes subalternas estão perdendo o medo da oligarquia e, para finalizar, que as batalhas definitivas a respeito do futuro da revolução boliviana serão travadas nos estados da Meia-lua.
Por Hugo Moldiz, de La Época
A afirmação não é um exagero. É o resultado do quadro político do território boliviano e suas forças: um ocidente que cujo apoio ao projeto eleitoral de Evo Morales não é menor do que 70% e um oriente no qual o projeto de mudança vem conquistando a maior parte das cidades de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija.
Isso explica o porque de a ultra-direita boliviana – com o respaldo do embaixador dos EUA, Philip Goldberg, em uma reunião fechada em Santa Cruz – está perdendo a pouca calma que lhe sobra desde que um índio, contra todos os prognósticos e agindo contra a "ordem natural" da democracia boliviana, triunfou nas eleições de dezembro de 2005 com 54% dos votos e, dois anos e meio depois, volta a obter uma histórica vitória, com 67,41% de aprovação no referendo de 10 de agosto.
Demasiadas doses para tão pouco tempo. O impacto dessa mudança radical na Bolívia foi além das expectativas e tirou de seu juízo os setores mais conservadores das classes dominantes (cuja maior parte é de origem estrangeira), que, encobrindo seus interesses de classe, apelaram para o discurso regionalista e racista, além de uma violência crescente para responder à insurgência indígena-popular que se abre, apesar de suas contradições e limitações.
"Que podemos esperar de um índio maldito, e digo isso de coração, porque não tenho medo dele, de um cocaleiro, um sindicalista... que podemos esperar de um tipo que não sabe nada?", gritava eufórica Ruth Lozada, dirigente do comitê cívico feminino na Praça 24 de Setembro, na noite de quinta-feira (28), minutos depois de o governo convocar por decreto o referendo constitucional para 7 de dezembro.
As palavras sujas da "culta aristocracia de Santa Cruz" se somam às dezenas de insultos que suas autoridades não se cansam de lançar contra Morales e os "kollas" (índios aymaras e quéchuas) rebeldes em tempos de pós-modernismo.
No entanto, o racismo como mecanismo de disciplina social praticado pelas classes subalternas e como instrumento para garantir a reprodução simbólica e real do capital, deixou de formar parte do sistema de doutrina predominante na Bolívia e agora está profundamente questionado.
Novo patamar
A chegada de Morales e dos movimentos sociais ao governo elevaram a auto-estima individual e coletiva da maior parte dos bolivianos (mais de 60% se reconhecem como indígenas), e agora nem os insultos ou a violência física rendem os frutos que desde a conquista foram empregados pelas classes dominantes.
É por isso que as ações executadas pelo paramilitarismo da União Juvenil Cruceñista (UJC), que só acata ordens do comitê cívico e do governador Rubén Costas, constituem uma expressão que é mais de debilidade do que de fortaleza. Não se trata de subestimar a situação da burguesia boliviana, cuja opção pela violência aumenta à medida em que perdem território político, mas um processo de expansão progressiva das idéias transformadoras – opção que parece ser a tendência no oriente boliviano.
Um segundo dado significativo de todas ações de violência registradas em Santa Cruz, que com segurança continuarão e se ampliarão a outros estados da Meia-lua conforme avance o processo de mudança, é que os pobres, em sua dupla convicção (de classe e de identidade), perderam o medo das múltiplas formas de violência que a ultra-direita utilizou nos últimos tempo contra eles.
A prova mais contundente de que estão perdendo o medo da oligarquia foi a marcha da última sexta-feira. Os afiliados da Central Obreira Departamental (COD) se dirigiram até a praça principal da cidade de Santa Cruz, numa mostra de apoio à convocação presidencial para o referendo, apesar da certeza de que os membros da UJC iriam atacar-lhes.
Os paus, as pancadas e as palavras carregadas de ódio e racismo, que se chocaram violentamente contra os rostos de mulheres e homens humildes, deixando inclusive em estado de coma um deficiente, não foram capazes de parar a insurgência popular na região.
Apesar de nesses dois anos e meio o processo de enfrentamento contra toda forma de exclusão ter crescido no oriente boliviano, foi somente em maio e junho passados que a rebelião social passou a um nível superior, quando as oligarquias encontraram resistência a seus estatutos econômicos em amplas zonas rurais e nas próprias cidades desses estados.
Esse nível de resposta ao caráter ilegal e ilegítimo dos estatutos autonômicos, que encontraram cerca de 40% de rechaço pela via da abstenção, foi a manifestação mais contundente de uma rebelião social no coração dos territórios da burguesia agro-exportadora e latifundiária.
Assim, uma alta porcentagem dos habitantes dos quatro estados da meia-lua quer voltar a se manifestar em dezembro por meio do voto. Mas, antes que chegue a data, as classes subalternas enfrentarão batalhas mais decisivas, das quais dependerá muito o triunfo no referendo constitucional e o início da transição a uma Bolívia não-capitalista. É por isso que até dezembro as batalhas estratégicas entre o insurgente grupo nacional-popular-indígena e o grupo imperial-burguês-colonial terão por cenário principal os estados da meia-lua
Tradução: Fernando Damasceno
Fonte: Vermelho
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