segunda-feira, 18 de maio de 2009

Serra, novo herói do PRP

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De olho em 2010, Serra adula as elites paulistas

Do Vermelho

SERRA E AS ELITES PAULISTAS

De olho em 2010, o governador de São Paulo quer revalorizar a Revolução Constitucionalista de 1932 na história política brasileira.

Matéria de capa da edição de maio da revista Retrato do Brasil mostra como o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), busca pavimentar seu caminho rumo à sucessão presidencial de 2010 adulando a elite do estado que governa. Entre as iniciativas do governador, está o lançamento de livros publicados pela Imprensa Oficial de São Paulo que reinterpretam o passado e revalorizam a elite paulista.

O papel das elites paulistas na história do País está sendo revalorizado pelo governador José Serra. No fim de 2007, por meio da Imprensa Oficial (Imesp), o governo de São Paulo lançou a Coleção Paulista, conjunto de livros que se propõe a levar aos estudantes e ao público em geral “a história de São Paulo e dos seus personagens” que influenciaram a vida brasileira. No lançamento, o organizador da coleção, o historiador Marco Antônio Villa, disse que ela tinha um objetivo político: “acabar com o mito de que todo político paulista tem o ranço do conservadorismo e desmascarar a história de que resgatar o discurso político paulista é conspiração da elite do estado de São Paulo”.

Nas comemorações do 76º aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932, a polêmica rebelião de São Paulo contra o governo de Getúlio Getulio Vargas, o governador escreveu na Folha de S. Paulo sobre o movimento. Em 2007, em seu primeiro ano à frente do governo, Serra foi vaiado nas comemorações do 9 de Julho, data da deflagração da revolta. Com certeza, para muitos conservadores paulistas – que consideram o golpe militar de 1964 como a Revolução de 1932 que deu certo –, Serra ainda é o político de esquerda que foi presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e o aliado de João Goulart, o presidente deposto pelo golpe.

O texto do governador, surpreendentemente, foi uma defesa da Revolução de 1932. Ele escreveu que o movimento tinha sido demonizado como separatista, mas que seu significado era outro: a sua direção “era exercida por setores identificados com valores democráticos, com a modernidade de então”, e que isso explicaria “o amplo apoio” obtido pelo movimento “em todas as camadas sociais”. Serra colocou a rebelião paulista no primeiro plano da história do País. “Enganam-se os que imaginam que recordar 1932 é simplesmente remexer no velho baú da história. É muito mais que isso: é uma bela data da história do Brasil e de São Paulo”, escreveu, em conclusão.

Uma semana depois, reafirmou esse ponto de vista. Compareceu ao lançamento, na Casa das Rosas, na avenida Paulista, de 1932: imagens de uma revolução, livro do mesmo Villa, também editado pela Imesp. Lá, repetiu que a guerra paulista foi “um movimento hegemonicamente democrático”. E elogiou o livro de Villa como uma grande contribuição histórica.

A Coleção Paulista é parte de um projeto maior. Ainda neste ano, o governo quer criar um Museu da Memória Paulista, na Mooca, tradicional bairro operário paulistano onde o governador nasceu. O museu abrigará um Centro de Memória e Documentação de São Paulo. O modelo é o Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea (Cpdoc), que funciona na Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Pela escolha de Villa como organizador da Coleção Paulista, a linha editorial a ser seguida não é de complementação, mas de contestação ao trabalho do Cpdoc, criado em 1973 e administrado durante longo tempo pela neta de GetúlioGetulio, Celina Vargas.

Villa é autor de uma biografia de Goulart, considerado o herdeiro de Vargas, no qual multiplica detalhes da vida íntima do ex-presidente, com o intuito claro de desmoralizá-lo. E, sem qualquer documento relevante para provar sua tese, atribui às fraquezas pessoais de Goulart pelo menos metade da responsabilidade pelo próprio golpe que o depôs. O historiador também é o criador do extravagante conceito de “ditabranda” com o qual tentou caracterizar como não ditatorial metade do período dos governos militares pós-1964 – os primeiros anos, do golpe até o AI-5, em 1968; e os últimos, a partir da anistia de 1978 até a posse do governo Tancredo Neves–-José Sarney, no começo de 1985.

Vargas e os “tenentes”

Na história da Revolução de 1932, Villa comete um desatino semelhante. A guerra paulista é a rebelião armada contra o governo Vargas, organizada a partir de dois partidos políticos do estado: o pequeno e novo Partido Democrático (PD, de 1926) e o grande e antigo Partido Republicano Paulista (PRP, de 1873). O PD apoiara a Revolução de 1930. Já o PRP pode ser considerado a viga mestra das forças derrotadas pelo movimento liderado por Vargas. Representava o grande poder econômico do País, na época, o dos cafeicultores paulistas. Indicara o paulista Julio Prestes para presidente nas eleições de 1930, na disputa contra Vargas, da Aliança Liberal. Prestes ganhou, mas não chegou a tomar posse, em virtude da vitória armada dos aliancistas.

Vargas chegou ao poder como comandante militar e líder de um grupo de jovens oficiais das Forças Armadas, conhecidos genericamente como “tenentes” e que, ao longo dos anos 1920, tinham se rebelado contra o coronelismo e os costumes políticos corrompidos da Primeira República (1889-1930), também chamada de República Velha.

Com a vitória em 1930, o “tenentismo” passou a caracterizar uma corrente política. A definição clássica do termo é a de Virgínio Santa Rosa (1905-2001), intelectual e político paraense. No livro O sentido do tenentismo, de 1933, Rosa diz que os “tenentes” constituem a corrente mais radical dos vitoriosos na Revolução de 1930, a dos que pleiteavam profundas modificações sociais no País, ao contrário da corrente moderada, dos que desejavam realizar somente as reformas de natureza política.

Villa redefine o significado do tenentismo a partir da Revolução de 1932. Ele diz que ela opõe dois grupos. De um lado, estavam os “tenentes”, um “grupo eclético que pressionava pelo adiamento das eleições para a Constituinte, previstas para 1933”. Eles “não tinham um projeto claro para o País”, diz Villa. Seus adversários “eram as reivindicações dos paulistas”. E, do lado paulista, completa Villa, estavam os democratas.

É uma redefinição tão radical quanto sem fundamento. É claro que o conceito de tenentismo de Santa Rosa merece – como de fato já mereceu – estudo e crítica. A questão levantada por Villa é outra, no entanto. Ele endeusa o PRP e define a revolta da aliança PD-PRP como uma defesa da “questão democrática”, pura e simples, como “uma espécie de tesouro perdido, muito valioso, especialmente em um país marcado por uma tradição conservadora, elitista e anti-democrática”. Esquece que o PRP era justamente o representante da tradição conservadora, elitista e anti-democrática da República Velha.

Villa faz o milagre ideológico de recuperar o PRP na escolha dos cinco primeiros títulos da Coleção Paulista e seus trabalhos de apresentação. O personagem e o livro principais desses primeiros títulos são Manuel Ferraz de Campos Salles (1841-1913), autor de Manifestos e mensagens. Campos Salles, o paulista que governou o Brasil de 1898 a 1902, foi também governador de São Paulo e um dos criadores do PRP. No texto de apresentação do livro, Campos Salles aparece, com razão, como o homem que montou o “mecanismo central da Primeira República”, uma combinação da chamada política dos governadores – o acordo entre os chefes considerados naturais das oligarquias nos estados – com uma política federal de arrocho fiscal e saneamento monetário, feita a partir de um acordo com os credores externos da dívida brasileira.

Esse mecanismo, diz a apresentação, permitiu ao PRP “controlar o centro da política brasileira por meio de negociações regulares com as demais oligarquias locais e o comando contínuo dos processos sucessórios”. O problema dessa apresentação é que seu autor, Júlio Pimentel, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (DH-USP), a despeito das cores aparentemente sombrias com que pinta a ação política de Campos Salles, considera “que não havia alternativa” à sua política econômica de submissão aos interesses dos banqueiros internacionais, especificamente, aos “termos ditados pelos Rothschild”, os donos da banca inglesa. E, por esse motivo, acaba chegando à conclusão de que a política conservadora de Campos Salles também era a única possível. Ele termina sua apresentação afirmando que “Campos Salles, dentro dos limites da política oligárquica da Primeira República, pensou o Brasil de forma ampla, concebeu seu papel na América, achou o lugar para o liberalismo possível, governou com austeridade incomum para os padrões brasileiros, deixou sua atuação documentada e comentada”.

Campos Salles, cujo reacionarismo é assim disfarçado, é acompanhado na Coleção Paulista por quatro outros personagens: José Bonifácio, o Moço (1827-1886), que teve reeditado seus Discursos parlamentares; o escritor Julio Ribeiro (1845-1890), com a publicação de duas séries de seus artigos políticos e sociais, Cartas sertanejas e Procellarias; o professor Paulo Duarte (1899-1984), com a edição de seu livro Agora nós, sobre a Revolução Paulista de 1924; e Joaquim Floriano (1826-1902), com a reedição de sua A província de São Paulo, um trabalho estatístico e geográfico que D. Pedro II levou à Exposição Industrial de da Filadélfia, em 1876.

1924, a outra revolução

A seleção de nomes sugere uma diversidade de opiniões dentro do campo liberal paulista que é bem maior que a importância dos políticos apresentados. O moço Bonifácio, sobrinho de José Bonifácio, o “Patriarca da Independência”, apresentado pelo próprio Villa, é um liberal cujos melhores momentos parlamentares se dão no combate à escravidão. Nessa frente, no entanto, é um retardatário: ainda em 1867, em defesa dos fazendeiros, pedia tempo para substituir o “braço escravo” que garantia as exportações do País.

Ribeiro é mais conhecido por seu romance naturalista A carne. No livro da Coleção, é crítico das eleições de Campos Salles e Prudente de Moraes pelo PRP. Mostra-se um republicano decidido, ateu e abolicionista radical. Mas não se vê sinal de que tenha tido qualquer peso na política das elites paulistas.

Dos outros dois autores, merece destaque: Paulo Duarte, que foi do PD, fundado por republicanos divergentes do PRP. Ele comandou, em 1932, o trem blindado que apoiava as tropas rebeladas no Vale do Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro. O texto de apresentação de Duarte é do conhecido historiador Boris Fausto. Ele lembra que Duarte é autor de Palmares ao avesso, sobre sua experiência na Revolução de 1932, livro no qual manifesta sua dúvida sobre o próprio movimento: admite que ele pode servir para fortalecer o reacionário PRP.

Em Agora, nós o tema é outro: o movimento dirigido pelo outro grupo político presente na história de São Paulo daqueles anos, o dos “tenentes” – a Revolução de 1924, contra o PRP e contra a República Velha. Derrotados depois de sofrerem intensa repressão – quase 500 mortos e mais de 4,5 mil feridos –, os “tenentes”, sob o comando de Miguel Costa, se retiraram para o sul do País após controlarem a cidade por cerca de um mês. No sul Sul, os revoltosos se uniram às tropas de Luiz Carlos Prestes, com as quais formaram a coluna famosa Miguel Costa-–Prestes (1925-1927), que percorreu o País fazendo propaganda armada da ampliação dos direitos democráticos e de reformas sociais.

Costa se refugiou com Prestes primeiro na Bolívia, depois na Argentina. De lá, Prestes aderiu ao Partido Comunista e recusou a Aliança Liberal. Costa voltou com Vargas, passou com ele por São Paulo, vitorioso. Ali, tornou-se comandante da Força Pública e auxiliar do interventor no estado, o “tenente” João Alberto.

Miguel Costa fundou em São Paulo o Partido Popular Paulista. É na tentativa de invasão da sede do PPP, na rua Barão de Itapetininga, perto da praça da República, no Centro paulistano, que, a 23 de maio, são feridos e depois morrem os famosos Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo, da sigla MMDC, da Revolução de 1932. No seu livro, ao contar o fato, Villa fala de uma grande batalha na qual os estudantes paulistas mobilizaram armas e recursos em todo o Centro da cidade para, depois de horas, vencer os militantes do PPP – que eram, afinal, apenas seis pessoas.

Costa nasceu em Buenos Aires, filho de pais espanhóis, mas viveu em São Paulo praticamente toda a sua vida. Pelo mesmo critério que levou à escolha de Júlio Ribeiro –, filho de pai americano e nascido em Minas Gerais –, como um personagem da história das elites paulistas, Costa também merecia um título. Mas a Coleção Paulista, pelo menos nessa sua primeira fornada de obras, não aparenta ser voltada para esse lado do espectro político. Sua preocupação se parece mais com a de Washington Luiz, o paulista que presidia o Brasil nos idos da Revolução de 1930 e considerava a questão social como um caso de polícia.

Disputa de preferência

A adulação da elite paulista nos termos das citadas iniciativas do governo de São Paulo é uma operação com objetivo claro: as eleições de 2010. O governador Serra é o grande candidato à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, desde o segundo turno da eleição de 2002, que ele perdeu para Lula, seu partido, o PSDB, compete, com dificuldade, com o PT, pelas doações de campanha do grande empresariado. Sua adversária provável na disputa pela preferência da elite endinheirada, concentrada em São Paulo, é a ministra Dilma Rousseff, candidata de Lula. Infelizmente, no contexto atual, de baixa mobilização popular, as eleições muitas vezes se convertem num espetáculo midiático, financiado por essa elite.

Adular as elites paulistas é uma lástima. Debatê-las é um tema atual. O vencedor do mais recente festival de documentários “É tudo verdade” foi Cidadão Boilesen, de Chain Litewski, sobre o assassinato, por guerrilheiros urbanos, em 1971, no bairro paulistano dos Jardins, de Henning Boilesen, presidente da Ultragás. O empresário dinamarquês é considerado o principal mediador dos contatos entre os empresários paulistas e os militares no apoio financeiro para a montagem da Operação Bandeirantes (Oban), responsável pela criação do centro de tortura sistemática de presos políticos em São Paulo. Em A ditadura escancarada (Companhia das Letras, 2002), Elio Gaspari conta detalhes do encontro entre o então ministro Delfim Netto e banqueiros, cerca de 15 pessoas, no qual cada um contribuiu para a Oban com o equivalente, na época, a 110 mil dólares. Gaspari afirma que, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), eram feitas reuniões ao cabo das quais se recolhiam as contribuições com o mesmo objetivo. Diz que empresas também participavam com contribuições em espécie: a Ford e a Volkswagen forneciam carros; a Ultragás, caminhões; e a Supergel, refeições congeladas para o centro de torturas.

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Fonte: Retrato do Brasil

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