Até o último dia no Iraque, os chefões sonegarão a verdade
Robert Fisk, 2/5/2009, The Independent, UK
"Reconhecemos", diz a carta, "que a violência custou a vida de muitos milhares de civis iraqueanos nos últimos cinco anos, seja o terrorismo seja a violência sectária. A perda de vidas humanas é trágica e o Governo sempre comprometeu-se com evitar baixas entre os civis. Os insurgentes e os terroristas não têm, lamento dizer, os mesmos escrúpulos."
Esse parágrafo saiu do "Grupo de Operações no Iraque, Comando das Operações" do Ministério da Defesa inglês, em documento assinado com letras que podem ser "SM" ou "SW" ou, quem sabe, "SWe". Estranhamente (mas compreensivelmente) não há qualquer nome legível, datilografado sob o rabisco que ocupa o lugar da assinatura do autor.
Que seja obviamente documento anônimo nem chega a surpreender, dado que não há qualquer referência aos civis massacrados na e pela operação de invasão e ocupação do Iraque por forças anglo-norte-americanas. Eu não faria nenhuma questão de parecer pessoalmente associado a esse tipo de mentira à moda Blair. O que é espantoso é que esse documento obsceno foi escrito em 2009.
Tenho de esclarecer desde já que devo esse documento revelador (que, de fato, tem data: 20 de janeiro) a um leitor nada anônimo do Independent, Tom Geddes, que supôs que me interessaria a "avareza com que o ministério da Defesa trata a verdade". Achei, sim, interessantíssima.
Estamos todos, agora, em plena era da verdade à moda Brown, quando afinal os ingleses arriaram a bandeira em Basra, ou estamos na era de "quase-certeza", do balanço de toda a catástrofe do Iraque. É hora, portanto, de lembrar os homens que nos arrastaram à guerra sob pretexto inventado. Minha opinião é que – como as pretensões de mudança, de Obama – tudo é falso, também o balanço. OK. Logo saberemos.
Mr. Geddes, leitor do Independent é bibliotecário aposentado, que trabalhou durante 21 anos na Biblioteca Britânica, chefe do setor de coleções germânicas, e é tradutor do sueco. Assim aconteceu que partilhamos a mesma paixão pelo trabalho da poeta sueco-finlandesa Edith Sodergrund.
Geddes escreveu ao Ministério da Defesa porque, aos 64 anos, ele, como eu (estou com 62), ficou impressionado quando leu que John Hutton, secretário de Defesa da Inglaterra, chamara de "cretinos" os que ridicularizam os soldados ingleses que estão voltando à Inglaterra (Sunday Times, Londres, 26/10/2008).
"Parece-me que o protesto popular não visa a denegrir a bravura individual e o espírito de sacrifício dos soldados", Geddes escreveu a Hutton dia 28 de outubro (os leitores perceberão que a resposta do ministério da Defesa, assinada por "SM", "SW" ou "SWe" demorou três meses!) – "[mas] é comentário político genérico que visa a protestar contra a ilegalidade e a amoralidade das recentes operações militares inglesas."
Não acho que a expressão tenha sido assim tão inocente. Mas a conclusão de Geddes – "a menos que seu ministério ou o governo inglês possam explicar e justificar a participação dos ingleses nessa guerra, não esperem que a população inglesa os apoie" – é impecável.
Tampouco se pode apoiar a resposta assinada por "SM". Eis outro parágrafo daquela carta execrável. "É importante lembrar que nossa decisão de tomar ação (sic) no Iraque foi resultado de Saddam Hussein ter-se recusado a colaborar com os inspetores oficiais da ONU (...). O ex-primeiro ministro expressou profunda lástima por alguma informação, dada com boa fé, relativa à existência de armas de destruição em massa no Iraque, que posteriormente se verificou ser incorreta."
Essa mentira deixou-me sem ar, sufocando. Saddam Hussein jamais "recusou-se a cooperar" com os inspetores de armas da ONU. O problema todo foi que – para grande susto de Blair e Bush –, o horrendo Saddam cooperou com os inspetores. Assim, a equipe de inspetores, coordenada por Hans Blix, chegou a um passo de descobrir que as "armas de destruição em massa" não existiam. Foi quando os norte-americanos obrigaram Blix e sua equipe a sair do Iraque, para que EUA e Blair pudessem encenar sua invasão ilegal e sem motivo. Eu vi o avião de Blix, estacionado no aeroporto de Baghdad, dois dias antes do ataque.
Observem-se as palavras enviesadas. Blair não deu qualquer informação "com boa fé", como diz "SM". Blair sabia – e o ministério da Defesa sabia (e suponho que "SM" também saiba) – que era mentira. Tampouco eram informações "incorretas", como escreveu "SM".
A carta, outra vez: "Podemos assegurar-lhe que o Governo não se teria envolvido em ação militar, se não estivesse convencido de que o envolvimento era justificado e legal. O ex-Advogado Geral, Lord Goldsmith, confirmou, dia 17/3/2003, a legalidade de empregar-se força militar contra o Iraque, por efeito combinado das Resoluções 678, 687 e 1.441 do Conselho de Segurança da ONU."
Tom Geddes responde, ultrajado: "O senhor deve saber que a decisão de invadir o Iraque jamais foi nem justificada nem legal. O parecer do Advogado Geral já foi descrito como "viciado". Suspeito que o Ministério da Defesa, hoje, já saiba disso." Eu também suspeito.
A carta-resposta que Tom Geddes recebeu é "resposta-padrão", e provavelmente está sendo enviada a todos os ingleses que escrevam cartas de protesto ao ministério da Defesa inglês. A frase "milhões de iraqueanos vivem hoje livres da opressão de Saddam e controlam seu próprio destino" é pura 'Relações Públicas', dentre outros motivos porque não diz que quase um milhão de iraqueanos já não controlam o próprio destino desde 2003 porque estão mortos. Morreram por causa da invasão.
Há uma frasezinha adorável, ao final da carta assinada por "SM", na qual ele (ou talvez seja ela) diz que "nossos bravos soldados e soldadas (...) estão preparando o aeroporto de Basra para transferi-lo ao controle iraqueano..." Sim, estão, é claro que estão. Porque – desde que foram forçados a retirar-se da cidade de Basra – o aeroporto de Basra é o único quilômetro quadrado do Iraque que ainda está ocupado por ingleses.
A carta termina com a sublime esperança de "SM" de que "essa carta contribua para dirimir suas dúvidas". Quanto a isso, só posso repetir o que escreveu Tom Geddes: "Agradeço a longa resposta, chocado com o conteúdo."
Também fiquei chocado. Sem dúvida, quando o governo Brown – ou o governo Cameron – completar o balanço de sua guerra ilegal, "SM" voltará à cena como testemunha ou, no mínimo, como porta-voz. Então, suponho que o "Grupo de Operações no Iraque" já terá sido extinto ou, então, talvez tenha sido convertido, por transmigração de corpos, em "Grupo de Operações no Afeganistão", com seu correspondente arquivo de mentiras históricas. Espero que, então, ainda haja um bibliotecário aposentado que ponha os pingos nos iis.
O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui.
Fonte: Vi o Mundo
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