sábado, 16 de maio de 2009

Poupança: falsa questão

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por Paulo Passarinho*

O governo acaba de anunciar mudanças nas regras de remuneração das cadernetas de poupança e dos fundos de renda fixa.

Com a projetada queda da taxa Selic, a explicação de autoridades e analistas - caso essas medidas não fossem tomadas - é que haveria o risco de uma migração de recursos, aplicados hoje em fundos de renda fixa, para as cadernetas. Essas passariam a ser mais atraentes, pois além de garantirem uma correção de 6% ao ano, mais uma variação vinculada à TR, gozam de isenção de tributos.

Os fundos de renda fixa, por sua vez, perderiam rentabilidade frente às cadernetas, pois além da incidência de imposto de renda e de taxas de administração variáveis, dependendo do banco gestor do fundo, a redução da taxa Selic faria com que essa modalidade de aplicação financeira deixasse de ser interessante.

O prejuízo para o governo seria que, com essa alegada possibilidade de perda de recursos líquidos dos fundos, os seus títulos públicos passariam a ter maiores dificuldades de serem negociados, na medida em que são justamente os recursos aplicados nesses fundos que viabilizam a massa de recursos aplicada pelos bancos no financiamento da dívida pública do governo, através da aquisição de títulos governamentais.

O aparente imbróglio nos permite algumas considerações a respeito de um dos principais problemas macroeconômicos que temos, e que estamos, a depender do atual governo, muito longe de resolvê-lo.

O grande segredo do Plano Real, e da sua virtude em ter reduzido significativamente as taxas de inflação na economia, se deve à forma como a economia brasileira passou a ser gerida, a partir de um complexo processo de integração financeira do país com a economia internacional.

Essa integração financeira implicou, inicialmente, na tentativa – frustrada em 1998 – de se estabelecer uma rígida paridade entre o real e o dólar, e que acabou nos levando à crise cambial ocorrida naquele ano. A partir de então, e já sob o monitoramento de um programa de ajuste exigido pelo FMI, o Brasil passou a adotar um regime cambial flutuante e, dado o peso do endividamento público e a pressão dos credores, a ter de produzir superávits primários fiscais, fator de grande constrangimento orçamentário.

O problema da opção de se procurar enfrentar a questão inflacionária brasileira, pela via da integração financeira, é que acabamos por renunciar à possibilidade de dispormos de uma política monetária soberana, voltada para a criação de condições internas adequadas ao crescimento econômico, à geração de empregos e, dentro deste contexto, ao controle das taxas de inflação.

Dentro da lógica adotada, a política monetária passou a ser refém do movimento de capitais externos. A remoção, paulatina e crescente, de todos os mecanismos de controle dos fluxos cambiais, passou a exigir do Banco Central uma ativa política de venda de títulos públicos, como forma de se enxugar o excesso de reais em circulação, decorrente do fluxo de recursos externos atraídos pelo país. Destaque-se que esta atração se deu não apenas pelas oportunidades de novos negócios produtivos no país, mas especialmente pelas altas taxas de juros aqui praticadas – garantindo alta rentabilidade aos aplicadores – e também pelo chamado programa de privatizações, deslanchado no período de governo de FHC.

As conseqüências desse tipo de política são nefastas. O endividamento do Estado brasileiro em títulos é espantoso. Em janeiro de 1995, a dívida mobiliária da União era de R$ 62 bilhões; hoje, ultrapassa a gigantesca cifra de R$ 1,2 trilhão. De 1999 em diante, anualmente, deixamos de aplicar vultosos recursos orçamentários na melhoria da máquina pública e em investimentos que seriam vitais para a melhoria do cotidiano do nosso povo, em nome de uma suposta economia de recursos – o chamado superávit primário – que faria com que o endividamento público viesse a diminuir.

A dinâmica do endividamento é dada pela política monetária – refém do livre trânsito cambial - e suas altíssimas taxas de juros. Temos tido, ano após ano, uma carga de juros da ordem de R$ 150 bilhões, saldada parcialmente pelo esforço do arrocho orçamentário travestido pelo nome de superávit primário. O restante a ser pago acaba por se materializar na emissão de novos títulos, que apenas fazem com que a montanha de títulos federais não pare de crescer.

A ótica liberal, amplamente repercutida pela grande imprensa, prefere apontar como fator primordial do endividamento público os gastos com a previdência, ou com os vencimentos ou contratações de servidores públicos. Omite que, a rigor, é o Orçamento da Seguridade Social quem financia os rombos financeiros do Orçamento do Tesouro, produzidos justamente pela política monetária.

Assim o faz, pois considera os gastos da política monetária como naturais e não questionáveis. Gastos vitais para a manutenção de um modelo de funcionamento da economia brasileira que atende especialmente aos bancos e às transnacionais, interessadas na integração subalterna de nosso país no processo de globalização.

Com a mudança divulgada ontem para a poupança, o governo perdeu mais uma oportunidade de enfrentar esse principal problema macroeconômico do país, que é o brutal e permanente processo de endividamento público.

O alegado problema decorrente da necessidade de financiamento da dívida mobiliária, frente à perspectiva de uma redução da taxa básica de juros, é uma falsa questão. Caso a política econômica servisse aos interesses da geração de empregos, do crescimento econômico e do controle inflacionário, independentemente das oscilações da conjuntura internacional, o caminho deveria ser outro.

Deveríamos restabelecer no país rígidos controles sobre os fluxos cambiais, chegando ao limite da adoção da centralização cambial, caso houvesse necessidade. Ao mesmo tempo, a taxa Selic deveria ser abandonada enquanto indexador de boa parte dos títulos públicos, com o fim das chamadas Letras Financeiras do Tesouro (LFTs).

Com medidas dessa natureza, e afastando os riscos de um processo de fuga de capitais, poderíamos seguramente reduzir a taxa básica de juros e o chamado superávit primário, além de criarmos boas condições para o alongamento do perfil dos prazos de vencimento dos títulos da dívida pública.

Medidas como essas permitiriam ao governo um aumento na sua margem de manobra para uma reconfiguração do Orçamento Público Federal, e a adoção de medidas mais consistentes para a preservação do crescimento econômico e da geração de empregos.

O único problema para a adoção de medidas desse tipo é de natureza política.

Implicaria romper com o pacto estabelecido desde o início dos anos 90 no país, e que tem no sistema financeiro e nas transnacionais os seus principais sustentáculos. Pacto este que acabou por cooptar o próprio governo Lula e dar sobrevida ao insustentável modelo que continua em curso e que agora, mais uma vez, demonstra que o rentável negócio da dívida pública é essencial para os interesses dominantes.

*Paulo Passarinho, economista, é presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.

Fonte: Correio da Cidadania

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