terça-feira, 12 de maio de 2009

Os pequenos terremotos

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Parece claro que a crise do mundo capitalista não vai trazer nenhum grande terremoto. Mas um grande terremoto nunca vem só nem de sopetão: em geral ele é antecedido por pequenos tremores, por céus nebulosos, tempestades e pequenas ou grandes inundações.

Desculpem a metáfora cediça, mas para a mediania bem informada e reflexiva, está claro que a presente crise do mundo capitalista não vai trazer nenhum grande terremoto. Pelo contrário, pode reforçar a centralização de poder financeiro, industrial e militar.

Mas um grande terremoto, insisto na metáfora puída, nunca vem só nem de sopetão: em geral ele é antecedido por pequenos tremores, por céus nebulosos, tempestades e pequenas ou grandes inundações.
Por isso mesmo, em tempos de monotonia, deve-se prestar atenção nos pequenos tremores.

Que hoje em dia não há “condições” para transformações revolucionárias, isso é claro como água que brota na rocha. Daí a predizer o futuro, ou discernir completamente as causas, isso é nebuloso como água do Tietê.
Reflitamos sobre o termo “condições”. Em marxês vulgar, isso quer dizer “falta de condições objetivas”, “infra-estruturais”, ou simplesmente que a fórmula messiânica ainda não completou a revelação das incógnitas.

Mas entre essas “condições” está também a imaginação. Não existe hoje, de qualquer ângulo que se olhe, imaginação acumulada para postular uma transformação revolucionária. A que tínhamos, faliu, foi varrida, ou na melhor das hipóteses foi posta na UTI. O muro de Berlim (já que escrevo relativamente a poucos quilômetros do que restou dele), para usar outra metáfora de pouco brilho, caiu na “nossa” cabeça, e não na “deles”.

Quando falo em “imaginação”, não estou falando em devaneio, nem em delírio. Estou falando no melhor do sonhar, que é acordar e continuar sonhando (essa metáfora não é tão baça assim) para decifrar o desejo oculto.

Vivemos em meio a uma geração cujo pensamento hegemônico se acostumou a ocultar, não a revelar, os desejos. Sei que o conceito de “geração” é muito problemático. Mas às vezes dá para falar com ele ao lado – nem que seja como mais uma metáfora que passou pelo ralador da história.

Na primeira metade do século XX a escritora Gertrude Stein cunhou uma expressão, que depois Hemingway consagrou, para falar dos intelectuais norte-americanos que vagavam pela Europa, meio sem destino, numa procissão aos quatro ventos de desiludidos: “the lost generation”, “a geração perdida”. Pois hoje vivemos em meio a uma outra geração perdida: me lembro disto cada vez que vou a uma manifestação, aqui na Europa, protestando contra algo, qualquer coisa, e encontro uma massa de gente com menos de 30 anos e uma pequena massa de gente com 60 ou mais, ou no máximo pouco menos.

No meio está, pode-se dizer, uma “Tatcher generation”, que, é claro, tem seus militantes, assim como nas outras vagam os seus “alienados” (palavra bem de antanho, essa). É a geração que viveu o boom do neo-liberalismo com a dama de ferro na Grã-Bretanha e os momentos agonizantes do mundo comunista, com o picadeiro de barbáries e desilusões que nos foi desvelado. Para os corações e mentes assim (con)formados, a barbárie do neo-liberalismo tornou-se um ideal civilizatório inelutável, a que estaríamos condenados ou para o qual os “sobreviventes” estariam “eleitos”.

Entre os partidos políticos, sinais de esquerdismo foram varridos para debaixo do tapete. A social-democracia européia tornou-se uma nota de rodapé, durante décadas, do pensamento conservador, seja sob a forma do “Labour” britânico, dos socialistas ou dos social-democratas strictu sensu. O marxismo refugiou-se em departamentos acadêmicos, quando pode, porque em muitos lugares foi expulso dos quadros como Adão e Eva do Paraíso. Na América Latina também não foi diferente, mas com a confusão semântica que nos caracteriza: temos um partido que usa a palavra socialismo, mas cuja prática, inclusive de seus setores mais à esquerda, sempre foi social-democrata (Não estou dizendo que isso seja ruim). Temos um partido que se diz social-democrata, mas que na verdade é de direita; e um partido de extrema-esquerda que vocifera contra o social-democrata, se diz “verdadeiramente” socialista, mas fez alianças com a escória da direita recentemente.

Entretanto, esse céu de brigadeiro, esse mar de almirante, essa planície para diligência de filme americano, do pensamento conservador, vem sendo sacudido intermitentemente por pequenos tremores, que, se não devem nos iludir quanto à sua magnitude, não devemos deixar que sua magnitude nos iluda quanto à sua pertinência e importância.

A América Latina inteira é um desses pequenos tremores, e esse sim, de grande magnitude. Não que haja no continente revoluções socialistas em curso. Mas se é verdade, como diz aqui na Carta Maior meu amigo José Luís Fiori, que a América Latina tornou-se um “continente sem teoria”, por outro lado é verdade que o que hoje acontece em nosso território não estava previsto em nenhuma teoria, e isso, por si só, é saudável para o pensamento. E para a ação. Uma revolução republicana e um contencioso social de tal monta expostos como mina a céu aberto (outra metáfora do carbonífero) não se previam nestas longitudes, mas vieram.

A eleição de Obama foi outro tremor. Pode-se discutir qual foi a monta dele, se não muito grande, se nem tão pequena. Mas acendeu em corações e mentes pelo menos a brasa da suspeita, senão alguma chama maior ou menor. Agora, nas águas da crise mundial, a Islândia (!) derreteu (outra, ainda mais gasta) 70 anos de hegemonia conservadora e elegeu uma coalizão de centro-esquerda. É verdade que a coalizão é problemática, entre social-demcoratas, verdes e alguns setores mais à esquerda, mas enfim, ela levou a eleição, depois das manifestações que puseram abaixo o governo de direita, num país que era o considerado, com a Irlanda, o Chile da Europa (a menina dos olhos do neo-liberalismo).

Na França, a hegemonia que apóia Sarkozy tem de enfrentar uma manifestação e uma greve depois da outra. Na Itália, o caso Battisti no Brasil levantou poeira suficiente para criar uma reflexão ostensiva sobre as condições passadas da justiça naquele país – o que do ponto de vista de longo prazo pode significar mais do que as sucessivas eleições de combalidas frentes de centro-esquerda que logo naufragam nos braços da direita reconduzida ao poder.

Nessa nossa barca de Gleyre (título de um livro de correspondência de Lobato com Godofredo Rangel, inspirado no quadro “Ilusões perdidas”, de Charles Gleyre, onde entre barcos que saem chega um com um velho tocador de lira) os pequenos tremores são sinais de que se ópera da macro-ordem mundial continua com a mesma pauta de sempre, embora a orquestra esteja mais desafinada do que nunca, os tenores andem roucos e os baixos de fala fina, as batucadas da noite e os tambores do amanhecer não param de tocar, nem que seja em surdina. Prestar atenção nisso, avaliar o caso de cada pequena irrupção dessas cuícas e desses atabaques é melhor do que apenas prestar atenção no silêncio dos inocentes ou na sinfonia dos basbaques. Ou babacas.

*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.

Fonte: Carta Maior

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