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por Leonardo Sakamoto
“Convencido de que a floresta existe para ‘servir ao homem’, o paulista Eucleber Vessoni ocupa 190 quilômetros quadrados de terras da União na Amazônia – 7,6 vezes o limite máximo de venda de terras pública permitido pela Constituição. Eucleber cria gado, como a maioria dos candidatos ao programa de regularização fundiária do governo na região de Marabá, com altos índices de desmatamento e recordista em conflitos fundiários no país.”
Retirei o trecho acima de uma matéria de Marta Salomon, do jornal Folha de S. Paulo de hoje. Ela trata das brechas no programa Terra Legal do governo federal que podem ajudar grandes invasores de terra a legalizar sua posse. Uma das formas de fugir das restrições, por exemplo, é dividir a propriedade entre familiares até o limite permitido por lei. Na prática, a terra fica com a mesma pessoa, mas com pedaços em nome de outros.
Além de evitar esse tipo de possibilidade, o governo deveria criar outras formas de restrição que levem em conta o que o invasor fez com a terra no período em que esteve em posse dela - o que hoje não existe. Expulsão de comunidades tradicionais, envolvimento em mortes e conflitos agrários, trabalho escravo, seriam alguns itens que deveriam ser checados antes de bater o martelo.
Vale lembrar que terras da União são patrimônio público. Ou seja, 190 quilômetros quadrados equivalem a 19 mil hectares pertencentes a todos e não a apenas um. Somado a isso, há um outro detalhe: de acordo com a Constituição, a propriedade deve ter função social. Caso contrário, deveria ser repassada a outras pessoas que fariam um melhor uso dela.
Em 2003, participei de uma libertação de 28 escravos na fazenda Ponta de Pedra, de Euclebe Vessoni, em Marabá. A ação realizada por uma equipe do grupo móvel de fiscalização, formado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal, foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade. Algumas pessoas não eram pagas há muito tempo, recebendo apenas arroz, feijão e alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam redes. A água que utilizavam era imprópria e servia ao mesmo tempo para consumo, banho e lavagem de roupa. O veneno usado no tratamento do pasto ficava na pele por falta de equipamentos adequados de proteção e misturava-se a essa mesma água.
Dos 28 libertados, dois tinham menos de 18 anos. Um deles com apenas 13 anos.
Pedro (troquei o nome para preservar a identidade do garoto) perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra de 14 quilos e começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Analfabeto, permaneceu apenas dez dias em uma sala de aula por causa da ação de pistoleiros no povoado onde ficava a escola. Depois, nunca mais. Trabalhava com motosserra há dois anos, fazendo 30 estacas por dia a partir de sapucaias, taúbas e canelas tão grossas que dois homens feitos não conseguiam abraçá-las. Passou fome, experimentou dengue e nesses dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida. “Trabalhar com serra é o jeito. Senão, a gente morre de fome.” Não sabia a data do seu aniversário e nem o que se comemorava no dia 1º de maio de 2003, dia em que foi encontrado pela equipe do Ministério do Trabalho e Emprego durante fiscalização na fazenda.
A lei permite ao jovem apenas a condição de aprendiz a partir dos 14 anos, em uma escola destinada a esse fim. Segundo Marinalva Cardoso Dantas, que coordenou a operação na época, o trabalho que ele realizava só seria permitido a partir de 18 anos e, ainda assim, sem as condições insalubres a que estavam expostos os cerqueiros.
O proprietário da fazenda foi obrigado a pagar mais multas e direitos aos trabalhadores. Pedro recebeu R$ 7,2 mil, a maior quantia entre todos. Contando toda a sua família, inclusive um irmão com deficiência, o total foi mais de R$ 20 mil.
No ano seguinte, o fazendeiro teve que fazer um acordo com o Ministério Público do Trabalho por conta da libertação ocorrida em sua fazenda. Segundo o acordo, homologado na 2ª Vara do Trabalho de Marabá, ele pagaria R$ 384 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Vessoni também passou pelo cadastro de empregadores flagrados com mão-de-obra escrava do Ministério do Trabalho e Emprego, conhecida como a “lista suja”. Ela é usada desde 2003 como referência para corte de crédito em bancos públicos e privados e para restringir negócios por critérios sócio-ambientais.
A terra existe para servir ao homem segundo o pecuarista. Só não explicou que o “homem” em questão é ele próprio. Até porque, no caso de sua fazenda, ocorria o inverso: 28 escravos serviam à terra.
Fonte: Blog do Sakamoto
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