quinta-feira, 2 de julho de 2009

Irã: é pueril a tentativa de dividir o mundo em dois campos de batalha

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Nos encontramos num momento crucial, não apenas para a nação iraniana como para a geopolítica da região. O desafio não reside em modelar a realidade do Irã até lhe dar uma forma com a qual nos sintamos cômodos, confirmando nossos preconceitos ou esperanças. O desafio consiste em compreender. Porque só compreendendo evitaremos o estabelecimento das condições que permitam a repetição dos piores erros da última década. A análise é de Peter Beaumont, editor da seção internacional do The Observer.

A crise iraniana está sendo sequestrada por quem se considera antiimperialista ou pró-democratas, confundindo sua verdadeira complexidade.

Ao visitar o Irã no ano passado com o objetivo de cobrir as eleições parlamentares, descobri um país completamente em desacordo com a maioria das descrições. Acabei discutindo sobre o sociólogo Durkheim com um produtor de discos de música clássica num cine-café e debatendo a situação política nas cidades santas xiitas com um guarda tradicionalista de uma mesquita do sul de Teerã. Sentei para beber vodka clandestina numa festa e discutir os limites da liberdade pessoal a respeito das regras de vestuário islãmico com uma professora liberal que, contudo, usava o lenço na cabeça. Até as atitudes dos partidários do presidente Ahmadinejad que conheci no campo eram complexas e confundiam o que eu acrediava que sabia. O Irã, como se vê, zomba de como o ocidente gostaria de enquadrar sua realidade.

Isso torna amiúde desconcertante ler muitos dos pontos de vista expressos durante a crise eleitoral do Irã: tenho tido de me esforçar muito para reconhecer o lugar que se pinta. É preocupante, porque, se há uma coisa que aprendi nos últimos quinze anos cobrindo informativamente tantas crises, é de que modo as descrições simplificadas ou distorcidas dos fatos se assentam facilmente como verdades, no lugar de serem postas em tela de juízo. E de que modo tão perigoso, assim como o Iraque deixou claro, esas falsas imagens alimentam os processos de tomada de decisões dos governos ocidentais.

No caso do Irã, o que tem se tornado visível no ocidente são duas versões do país que competem entre si, pintadas pela imaginação política e das quais dois campos rivais têm se apropriado – e se enfrentado – que se assenhoraram de nosso debate sobre os assuntos externos desde o 11 de setembro e da invasão do Iraque. Ambos partem de uma nova guerra fria das idéias; suas posturas, limitadas e mutuamente antagonistas, têm interpretado cada uma das crises internacionais que vêm surgindo para lhes adequar a sua própria ordem do dia, a despeito das do outro lado.

De um lado estão os restos da velha esquerda, reforçados por uma nova geração radicalizada pelo ativismo altermundialista e contra a mudança climática. Informados por autores como o veterano ativista Noam Chomsky e jornalistas como John Pilger, sua visão de mundo se caracteriza por se constituir discurso “antiimperialista” que se mostra hostil às intervenções ocidentais.

Do lado oposto, encontra-se um grupo mais difuso e bastante mais influente na configuração da política, cujos componentes vão de liberais em sentido amplo a neoconservadores. A convicção unificadora que tem mantido esse grupo consiste numa crença quase religiosa no poder transformador que os hábitos democráticos ocidentais possuem, quando se transplantam a sociedades e a culturas que experimentaram uma considerável restrição de suas liberdades. Há que se dizer que se trata de uma crença que permanece estranhamente imutável, apesar dos múltiplos fracassos dos últimos anos.

Não obstante, as duas tendências são, espelho uma da outra num aspecto crucial: a forma que têm de descrever um Irã mais homogêneo do que aquele que existe: ou bem mais universalmente desesperado por mudanças ou bem mais partidário de Ahmadinejad.

De forma mais geral, o resultado é que o debate sobre os assuntos internacionais se vê dominado por estas duas visões de mundo, em que ambas se apropriam de cada nova crise internacional como evidência que reforça por si mesma seus argumentos, o que tem como consequência um diálogo degradado em que se apontam ameaçadoramente os dedos e se chamam de tudo. Quem intervém o faz, comumente, para confirmarem suas credenciais diante de seu próprio público. Enquadrar assuntos como o Irã em termos de argumentação ocidental pró-democrática também pode ter efeitos não desejados. Num país cujos dirigentes cultivam suspeitas quase paranóicas a respeito dos Estados Unidos e do Reino Unido, torna-se um convite aberto interpretar os comentários como “interferências”, tal como inevitablemente tem ocorrido nos últimos dias.

No caso dos acontecimentos das últimas duas semanas no Irã, a reação tem sido deprimentemente familiar. Para a esquerda dissidente, confrontada ao que se parece supostamente com outra “revolução colorida”, depois da “revolução rosa” na Georgia e da “revolução laranja” na Ucrânia, que receberam apoios dos grupos em favor da democracia, a resposta tem consistido em dar respaldo ao “antiimperialista” Ahmadinejad, amigo do pobre e inimigo do sionismo, como o vencedor mais provável. Mais vítima de uma tentativa de golpe de estado que responsável por outro desde o poder, trata-se de uma versão dos fatos que, graças à necessidade de reforçar sua defesa, tem jogado ao ao desaparecimento as características mais difíceis de engolir do Irã de Ahmadinejad.

Essa crítica tem andado mais que de par com uma tralha de opinião equivalente, amiúde por parte de quem tem mais familiaridade com Tel Aviv ou Tallahassee do que com Teerã, e que de todo coração caiu no conto da “liberdade” e tenta interpretar as manifestações da multidão que apóia Houssein Mousavi de forma igualmente simplista, como fosse ele o representante das aspirações de todo o Irã.

Trata-se de uma versão que têm algumas lacunas.

Ao investir tanto na oposição reformista e deixar-se seduzir por uma versão que procede da periferia do norte de Teerã, pouco representativa, não chega a reconhecer nem a natureza da agenda de Mousavi – alguém que se autorretrata como “reformista fundamentalista” bastante menos radical do que se imagina – nem a realidade do enorme apoio que tanto Ahmadinejad como a revolução islãmica recebem de sua base.

Que o debate tenha parado nas mãos dessas posturas superficiais tem sua importância, precisamente porque importa para a imagem que temos do Irã.

E agora, mesmo no caso do Irã, existe uma necessidade abrumadora de examinar com cuidado o que está acontecendo que ultrapassa a habitual apresentação de Ahmadinejad como um simples ditador que nega o Holocausto e a Mousavi, como depositário das esperanças de um tipo de reforma liberal ocidental da revolução iraniana.

A crise de legitimidade que vem se desenrolando depois das eleições iranianas impugnadas não pode ser representada com remédios simples. As tensões sociais e políticas que vêm sendo alimentadas desde a revolução islãmica tem cobrado impulso desde o surgimento dos reformistas como força política séria. Apelam a um conjunto de preocupações que só podem ser compreendidas no contexto iraniano. Entre esses problemas está a questão premente de como reconciliar a questão cada vez mais conflitante de como se comportam as pessoas em seus lugares privados e os espaços públicos mais restritivos. Também se registra uma tensão que vem se acumulando há mais de uma década entre o conceito de veayat e e-faqih – a jurisprudência clerical – e o desejo de uma representação democrática significativa maior, no contexto de um estado socialmente conservador.

Também, e de maneira crucial, tanto para os partidários de uma linha dura ciosos de continuarem o legado do aiatolá Khomeini, como para os reformistas, a atual crise se vê impulsionada pela tensa antecipação precisamente do que acontecerá com uma das pedras angulares da revolução, o papel do líder supremo, que tem inclusive questionado o aiatolá Ali Khamenei, agora o desempenha.

Também deve ser levado em conta o assunto dos limites flutuantes da tolerância, no que concerne à expressão política e aos termos em que se estabelece um regime cada vez mais nervoso, num estado que desfruta de mais liberdades do que em geral se imagina, mas que ainda seguem gravemente restritas.

Por último, e também mais importante de tudo, está a questão de como negociam as frágeis instituições uma divisão crescente que – pela natureza da aritmética que ambas as partes engendram – não se pode resolver nem com o predomínio da facção de Ahmadinejad nem com o dos reformistas.

Nos encontramos num momento crucial, não apenas para a nação iraniana como para a geopolítica da região. O desafio não reside em modelar a realidade do Irã até lhe dar uma forma com a qual nos sintamos cômodos, confirmando nossos preconceitos ou esperanças. O desafio consiste em compreender. Porque só compreendendo evitaremos o estabelecimento das condições que permitam a repetição dos piores erros da última década.

*Peter Beaumont é editor da seção internacional do TheObserver. Cobriu guerras na África, no Bálcãs e no Oriente Médio e escreveu sobre direitos humanos e sobre a repercussão dos conflitos sobre os civis. Seu último livro se chama The Secret Life of War, publicado por Harvill Secker.

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Carta Maior

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