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Os estudos preparatórios da conferência sobre a crise, promovida pela ONU, apresentam dimensões nunca vistas desde a Grande Depressão. O estudo da FAO identificou que o número de pessoas atingidas pela fome ultrapassou a marca de 1 bilhão e a Organização Internacional do Trabalho estimou que 200 milhões de trabalhadores poderão passar a uma situação de indigência e o aumento do número de desempregados pode chegar a 50 milhões este ano. A conferência deveria ser um marco na história da ONU, mas o projeto de documento final apresentou uma posição muito difusa.
por Douglas Estevam
A imagem foi evocada pelo padre nicaraguense Miguel d’Escoto, presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, no seu discurso de abertura da Conferência sobre a crise econômica e financeira mundial, realizada na sede da Nações Unidas no mês de junho, entre os dias 24 e 26. Um mundo destruído pelas forças da natureza não foi uma imagem utilizada em vão. Estima-se que a mudança climática pode resultar na eliminação de 30% das espécies vivas do planeta e produzir, na segunda metada do século, uma população de até 200 milhões de refugiados climáticos.
Escoto, que não nega a influência da Teologia da Libertação, sabe que a “mão invisível” que gerou a tormenta é indissociável da ação dos homens. Para reconstituir os capitais dos bancos, nacionalizar alguns estabelecimentos financeiros e garantir depósitos bancários e outros ativos financeiros, em sete meses foram utilizados 18 trilhões de dólares dos fundos públicos. Os estudos preparatórios da Conferência, apontando as primeiras consequências da crise, apresentam dimensões nunca vistas desde a grande Depressão. O estudo da FAO identificava que o número de pessoas atingidas pela fome ultrapassou a marca de 1 bilhão e a Organização Internacional do Trabalho – OIT estima que 200 milhões de trabalhadores poderão passar a uma situação de indigência e o aumento do número de desempregado pode chegar a 50 milhões este ano.
Esta Conferência seria um marco na história da ONU. A compreensão que norteava a ação de alguns dos seus membros mais combativos era de que esta seria uma ocasião para o mundo inteiro se posicionar, principalmente os países mais pobres, que não tiveram o direito de intervir nas decisões adotadas pelo G20. Escoto entendia que "nós temos a ocasião histórica e a responsabilidade coletiva de dar à ordem financeira e econômica do mundo uma nova estabilidade e uma durabilidade inédita". Sabendo do impacto maior que a crise provocará nos países mais pobres, os países do sul, ele entende que "esta evolução, que começaria a sondar a fratura entre Norte e Sul, exige a participação de todas as nações do mundo. Trata-se aqui de uma reunião do G-192 », em referência ao numero de países que compõem a Assembleia que poderiam influir, com uma representatividade sem paralelos entre as organizações internacionais, na elaboração de respostas à crise.
Comissão Stiglitz
A organização da Conferência foi iniciada em novembro do ano passado, quando a crise econômica começava a apresentar suas primeiras consequências. Os Estados membros da ONU solicitaram ao presidente da Assembléia que se encarregasse dos preparativos de sua organização. Uma das primeiras medidas adotadas pelo presidente Escoto foi a formação de uma Comissão de Experts, composta de 18 membros, entre economistas, ministros e políticos, cuja presidência foi atribuída ao economista Joseph Stiglitz.
Este grupo foi o responsável pela preparação de um primeiro conjunto de propostas apresentadas aos membros da Assembléia e que "deveria refletir sobre o funcionamento dos sistemas financeiros mundiais e aos meios de instaurar uma ordem econômica mais durável e mais justa". O documento intitulado "Recomendações da Comissão de Experts" analisa a amplitude da crise que "de uma punhado de países se propagou para o conjunto da economia mundial". Uma crise cujos problemas vão além das políticas monetárias e da regulação do setor financeiro, e se encontram na influência das "políticas que certas autoridades e instituições internacionais tiravam de doutrinas econômicas que estavam na moda, segundo as quais os mercados agindo soberanamente são por eles mesmo eficientes e autocorretores".
A Comissão formulou um conjunto de propostas para aplicação imediata e medidas para "resolver os problemas estruturais". Entre a dezena de medidas imediatas encontra-se o financiamento suplementar para os países em desenvolvimento - de acordo com o Relatório do Secretariado Geral da ONU, os investimentos de capitais privados nos países em desenvolvimento tiveram um queda de mais 50% em 2008 e uma baixa de mesma proporção é esperada para este ano. Medidas para evitar o protecionismo, abrir o mercado dos países desenvolvidos para as exportações dos paises menos desenvolvidos são também propostas. As análises mostram um redução média anual de 40% do comércio mundial registrado no primeiro trimestre deste ano, e a previsao de que o ano termine com uma redução de 11%. Outras propostas incluem a coordenação dos efeitos locais e mundiais das ajudas públicas ao setor financeiro e a criação de um grupo para coordenação de políticas econômicas em nivel mundial, que poderia contar mesmo com a participação de movimentos sociais.
O programa de reformas sistêmicas incluiria a criação de um novo sistema internacional de reservas. Reconhecendo que medidas adotadas por instituições econômicas internacionais nas crises precedentes foi uma das causas dos desequilíbrios mundiais, os riscos do "sistema atual consistindo em acumular reservas internacionais" são uma limitação à uma reorganização eficaz da economia. O documento prossegue analisando que "as dificuldades que engendra a utilização dominante de uma moeda nacional única como moeda internacional de reserva são bem conhecidas e nós tentamos resolver este problema criando um sistema mundial de reservas" que se basearia numa tiragem anual de 250 bilhões de dólares em Direitos de Tiragem Especial do FMI.
Outras medidas de mudanças sistêmicas são a reforma da governança das instituições financeiras internacionais, principalmente do Banco Mundial e do FMI, a criação de um Conselho mundial de coordenação econômica, a reforma de políticas dos bancos centrais, um conjunto de políticas relativas aos mercados financeiros, chegando mesmo a abordar problemas das dívidas dos países em desenvolvimento e cogitando moratórias ou anulação da dívida.
A limitação do ambiental
Entre os membros que compunham a Comissão de Experts se encontravam três Representantes Especiais do Presidente da Assembleia. François Houtart foi nomeado pelo presidente da Assembléia com o ojetivo de que, nas suas proprias palavras, ele "pudesse orientar uma discussão sobre os impactos sociais mais largos da crise atual". Escoto tinha em mente a intervenção feita por Houtart na ONU e esperava deste "lembrar as ligações entre as diversas crises, mas sobretudo de insistir sobre os efeitos sociais e humanos das situações criadas por um sistema cuja lógica conduziu as crises". Houtart tentou todo o tempo lembrar à Comissão a interligação entre a crise financeria a alimentar, classificadas por ele de conjunturais com vocação estrutural, e as crises energética e climática, estas duas como estruturais. Ele enfatizou que a crise dos preços dos alimentos não teve como sua causa principal a redução da produção, mas as manobras especulativas e a produção de agrocombustíveis. Os estudos da FAO estimavam em 115 milhões o número de pessoas adicionais atingidas pela alta do preço dos alimentos em 2008. Além dos 1,02 bilhões de pessoas afetadas pela fome, outros 2 bilhões, segundo dados anteriores à crise, encontravam-se em situação de carência alimentar. Os preços dos alimentos continuam em alta, principalmente o arroz, milho e trigo, e estima-se novas altas para os próximos anos. O relatório apontou ainda entre os fatores estruturais do problema a produção de agrocombustíveis e as mudanças climáticas, estimando que os preços dos alimentos serão mais altos nos próximos dez anos.
Houtart identifica nos trabalhos de preparação da Comissao a “lógica de uma orientação neo-keynesiana destinada a relançar a atividade econômica através de intervenções públicas”. Sem desqualificar a utilidade destas proposições, ele tenta ir além: “a questão de fundo não é fazer uma lista de regulações possíveis, mas de se perguntar por que regular?”. Esta questão coloca o problema da "finalidade da economia e de sua orientação". "Vamos reorganizar os sistemas monetários e financeiros para salvar a indústria automobilística fabricante de veículos poluentes? Vamos financiar monoculturas destinadas à agroenergia e destruidoras dos solos, da água, da biodiversidade e expulsando milhões de camponeses de suas terras?". Mesmo com seu árduo trabalho de argumentação, estas proposições acabaram tendo uma importância reduzida no documento final da Comissão.
Nações Unidas?
Em coletiva de imprensa realizada na véspera da abertura da Conferência, Escoto afirmava que "as lutas pela democracia e pela emacipação nunca foram fáceis ». Os documentos publicados pelos serviços de informação da ONU faziam menção à uma "grande decepção" dos paises do G77, presidido atualmente pelo Sudão, em relação ao documento final apresentado. Estas "especulaçoes" não eram completamente infundadas.
As reuniões anteriores de formulação do Projeto de documento final e a organização mesmo da Conferência foram marcadas por acirradas oposições entres os países do sul e o países desenvolvidos. Além das Recomendações da Comissão Stigltz, foram elaborados dois documentos facilitadores, sendo o grupo dos países ricos representado por Frank Majoor, dos Países Baixos, e Camillo Gonsalves, de Saint-Vicent-et-les Grenadines o representante dos países em desenvolvimento. Estas proposições foram complementadas por um documento do próprio presidente da Assembléia, que "foi acolhido friamente pela União Européia e pelos EUA ». Representantes dos países mais ricos diziam que as proposições apresentadas pelos países mais pobres eram "muito emocionais" e que a crise teria consequências importantes nos países ricos. Os países mais pobres apresentavam medidas de mudanças mais estruturais. Houve uma forte articulação dos países membros do G20 para que a Conferência não tivesse a presença de chefes de Estado, desqualificando a importância do acontecimento, tendo certos países da União Européia classificado a Conferência de "piada, tragédia e perda de tempo".
Miguel d’Escoto, que chegou a ser taxado de esquerdista, na V Conferência da ALBA realizada em abril na Venezuela, declarou que as Nações Unidas são uma ditadura e reafirmou que um de seus objetivos era democratizar a organização. Ele tentava garantir a presença dos presidentes na Conferência em oposição às articulações do G20. De fato, o Projeto de Documento Final da Conferência apresenta uma posição muito mais difusa quando comparadas com os primeiros estudos. As proposições de reforma do sistema monetário feitas por alguns países, que foram classificadas no documento como "barulhentas", seriam submetidas a um exame para avaliar até que ponto elas são mais eficazes e "desejáveis". Também de uma maneira vaga, as reformas do sistema de representação do Banco Mundial e FMI são mencionadas, avaliando positivamente as medidas destas instituições e solicitando reforço do orçamento do FMI. Os representantes de Cuba, Venezuela, Nicarágua e Irã estimaram o texto insuficiente, que não abordaria de maneira apropriada as causas e soluções para a crise financeira e econômica. Eles também rejeitaram a idéia de "segurança humana" contida no texto, estimando que isso possa permitir a ingerência na soberania dos Estados e pediram o fim da hegemonia monetária do dólar. O presidente Rafael Correa reafirmou a posição de que fundos de reserva regionais e outras medidas coletivas deveriam ser priorizadas em relação às políticas do FMI.
Um conjunto de organizações sociais que vinham trabalhando na Europa em torno da crise prepararam um encontro com François Houtart na França para analisar o avanço dos trabalhos da Comissão Stiglitz, da Conferência e a elaboração de estratégias de ação. Notando limitações nas proposições da Comissão, a deslegitimação a qual seria submetida a Conferência em razão do lobby político realizado pelos países mais poderosos, sobretudo EUA e União Européia, e pela posição que alguns países emergentes vinham adotando durante todo o processo de preparação da Conferência, a avaliação desenvolvida pelas organizações é que resoluções importantes na tranformação do sistema não seriam adotadas pela ONU. Soma-se a isto o fato de que o conjunto das crises, e principalmente a centralidade da crise ambiental, teria uma importância reduzida. O entendimento destas organizações é que a Conferência sobre as Mudanças Climáticas da ONU, que será realizada em dezembro na cidade de Copenhague, será a ocasião mais importante para fazer uma análise profunda e estrutural do conjunto das crises e a elaboração de proposições efetivas englobando uma mudança da estrutura econômica na qual a questão ambiental assuma sua devida importância.
Contudo, a expectativa em relação a esta Conferência da ONU, é que ela se estabeleça com uma continuidade e que não se reduza à esta presidência de Escoto, que se encerra em setembro, mas que ela continue com o proximo presidente. Em um dos encontros da Comissão, Houtart dizia pensar que "o diálogo com os meios de negócios e os organismos financeiros internacionais é inutil. É preciso inicialmente estabelecer uma relação de forças suficiente, se não o diálogo se torna somente uma arma a mais na luta de classes. O diálogo só é possível entre interlocutores iguais e hoje as condições não estão reunidas.” Miguel d’Escoto insiste em que a Conferência não deve ser interpretada como um fim em si, mas como um processo, e "o que foi rejeitado hoje pode ser agregado amanhã".
Fonte: Carta Maior
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