domingo, 5 de julho de 2009

Anistia a imigrantes: afinal, o que é, de fato, ser brasileiro?

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por Leonardo Sakamoto

O presidente Lula sancionou hoje uma nova anistia para que os estrangeiros que estão em situação irregular no Brasil. Com isso, quem entrou até 1º de fevereiro pode entrar com pedido de residência provisória e ter direito à liberdade de circulação, a trabalhar, ter acesso à saúde, educação, Justiça. Entre taxas de regularização e expedição de carteira de identificação, custo por pessoa será de R$ 98,00. O prazo para o registro será de 180 dias após a publicação da lei no Diário Oficial.

A notícia é ótima, mas os problemas para os imigrantes ilegais não serão resolvidos de um dia para noite. Primeiro, porque o valor não é tão baixo em se tratando de famílias pobres com muitos membros: por exemplo, cinco pessoas terão que desembolsar R$ 490,00 – o que não é pouca coisa para quem já não ganha quase nada. Além disso, para obter o registro definitivo, o estrangeiro terá que, entre outras coisas, comprovar que está trabalhando. Considerando que muitos estão na informalidade – como uma parte considerável do resto da população brasileira – quais serão os documentos exigidos? Contracheque fantasma de oficina de costura ilegal?

É um primeiro passo, mas o ideal seria atingir algo mais profundo, que mude também a forma como vemos a América do Sul e como a “Sudamerica” nos vê.

Os preços baixos de roupas em ruas de comércio paulistanas como a José Paulino ou a Oriente, que tanto atraem os consumidores do varejo e do atacado, muitas vezes são obtidos através da redução dos custos no processo de produção. A maior parte dos funcionários utilizados na confecção dessas roupas é composta por imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. Bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos formam um verdadeiro exército de mão-de-obra barata e abundante em São Paulo. Saem de seus países de origem em busca de uma vida melhor em solo brasileiro, fugindo da miséria. Das comunidades latino-americanas na capital paulista, os bolivianos destacam-se por constituir a mais numerosa. Além disso, encontram-se nas situações mais graves de exploração e degradação do trabalho humano.

As autoridades brasileiras não têm números precisos que permitam quantificar esses trabalhadores. A Pastoral do Migrante - entidade ligada à Igreja Católica que fornece apoio aos imigrantes no país e que é considerada uma das maiores referências no tema - estima que o Brasil abrigue cerca de 600 mil estrangeiros sem documentação legal.

Muitas oficinas estão instaladas em porões ou locais escondidos, pois a maior parte delas é ilegal, sem permissão para funcionar. E para que suspeitas não sejam levantadas pelos vizinhos, que acabariam alertando a polícia, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho das máquinas, música boliviana toca o tempo todo. Os cômodos são divididos por paredes de compensado. Essa é uma estratégia para que os trabalhadores fiquem virados para a parede, sem condições de ver e relacionar-se com o companheiro que trabalha ao lado - o que poderia resultar em mobilização e reivindicação por melhores condições.

Em muitos casos, o dono da firma, quando se ausenta, tranca a porta pelo lado de fora, para que ninguém entre ou saia do recinto. Além disso, os locais não oferecem as mínimas condições de segurança e higiene: a fiação é exposta e traz riscos de choques e incêndios. O valor das três refeições diárias - café da manhã, almoço e jantar, com duração de cerca de 20 minutos cada uma - é descontado do saldo a receber, assim como água, luz e moradia.

Outro ponto que alimenta a manutenção do sistema é a coerção psicológica a que são submetidos os bolivianos. Por estarem, a grande maioria, em situação ilegal no país, sofrem ameaças por parte dos patrões de que, se tentarem fugir ou reclamarem daquela situação degradante, serão denunciados à Polícia Federal. Os patrões adotam ainda uma outra prática que contribui para manter o trabalhador sob seu domínio. Logo no primeiro dia de trabalho, o dono da oficina recolhe os documentos dos imigrantes e os guarda em seu poder. A prática de retenção de documentos é largamente utilizada entre os fazendeiros da região de fronteira agrícola.

Parte do processo de combate ao trabalho escravo rural no Brasil tem passado por uma ação de conscientização junto aos consumidores e pressão sobre a cadeia produtiva. No caso dos imigrantes latino-americanos, não é diferente. Ações vêm sendo tomadas junto a grandes empresas como C&A, Marisa e Renner, já flagradas no passado com problemas em suas cadeias produtivas, para verificar a situação de seus fornecedores, evitando assim financiar essa forma de exploração.

A solução passa por algo estrutural. É mais fácil ouvir nossos governantes pregarem a integração econômica do que a livre circulação de pessoas e o trabalho livre em qualquer lugar por qualquer cidadão do Mercosul, por exemplo. Queremos menos barreiras tarifárias, mas deixamos as barreiras sociais intactas.

Os bolivianos não vem para cá atrás das belezas naturais de São Paulo, mas sim de oportunidades de vida melhores, fugindo da miséria. Miséria da qual, muitas vezes, somos co-responsáveis por explorar terra, trabalho e recursos naturais lá. Guardadas as proporções, é a mesma coisa que o pessoal do hemisfério norte faz com a gente aqui. Reclamamos de empresas estrangeirass operando no Brasil, porém, quando alguém na Bolívia ou no Paraguai pensa em rever contratos para tornar menos dolorosa a exploração, a opinião pública daqui brada aos quatro ventos o absurdo que é essa ousadia. Repensar o livre trânsito de trabalhadores é uma saída radical, mas que pode dar humanidade a essa discussão.

Quem circula pelo centro da cidade percebe que os rostos indígenas já fazem parte da paisagem e o quéchua e o aymará já são ouvidos nas ruas, nas rádios (que sistematicamente são fechadas pela Polícia Federal sob a pecha de “piratas”), nas feiras. Os jovens bolivianos, muitas vezes sem acesso aos serviços básicos que outros paulistanos dispõem, juntam-se em gangues para reafirmar sua identidade e se proteger do mundo e de todos.

Assunto do governo federal? Sim, mas o município tem uma grande parcela de responsabilidade. Até porque não me lembro de nenhum governante da cidade reclamar dos impostos gerados pelo setor têxtil do Bom Retiro e do Brás, que têm exploração de imigrantes em suas cadeias produtivas… A implantação de centros de atendimento social e jurídico e de centros de atendimento ao trabalhador imigrante também seria um bom caminho, desde que dessem apoio e que nunca fossem usados como portas de deportação. Impedir o funcionamento das oficinas ilegais seria outro - e a prefeitura tem poderes para tanto, uma vez que poucas delas têm autorização para funcionar. Pode-se até em pensar em alguma lei que revogue a licença de funcionamento de empresas que se beneficiam, mesmo que indiretamente, de produtos têxteis feitos com essa mão-de-obra. Acima de tudo, não tratar o tema como um caso “de polícia”, mas de um problema social - que nós mesmos ajudamos a causar.

Afinal, qual o conceito de “brasileiro”? A história de nosso país é uma história de migrações, de acolher gente de todos os cantos do mundo (não tão bem, é claro - São Paulo, por exemplo, é a maior cidade nordestina fora do Nordeste e, ao mesmo tempo, ostentamos um preconceito raivoso e irracional). Mas não faz sentido que viremos às costas aos que vêm de fora e adotam o Brasil, mesmo que a contragosto. Eles são tão brasileiros quanto eu e você, trabalham pelo desenvolvimento do país, mas normalmente passam invisíveis aos olhos da administração pública e do resto de nós.

Fonte: Blog do Sakamoto

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