quinta-feira, 19 de março de 2009

Western amazônico

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por Rodrigo Martins

Após décadas de devastação, o Estado brasileiro finalmente assumiu a responsabilidade de reordenar o caos fundiário na Amazônia e colocar um freio às ocupações ilegais de terras públicas na região. Mas o remédio proposto pelo governo Lula está longe de ter formado um consenso entre ambientalistas, produtores rurais e parlamentares dos mais variados matizes, inclusive na bancada governista. Encaminhada para a Câmara dos Deputados, em 11 de fevereiro, a Medida Provisória 458, destinada à promoção de uma ampla regularização fundiária nos estados que abrigam a floresta, recebeu 249 propostas de emenda em menos de um mês.

A proposta prevê a doação de terrenos de até um módulo fiscal (no máximo 100 hectares) aos pequenos posseiros e a regularização de lotes com até 1,5 mil hectares por meio da venda direta aos ocupantes. O excedente, entre 1,5 mil e 2,5 mil hectares, também pode ser legalizado, mediante compra em licitação pública. Acima desse montante, a venda só pode ser concluída com o aval do Congresso, como reza a Constituição de 1988. Com isso, o governo espera identificar os posseiros e grileiros de uma extensão superior a 67,4 milhões de hectares de terras da União na Amazônia, equivalente às áreas, somadas, da França e de Portugal.

Segundo o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, a regularização fundiária é indispensável para o governo assumir, de fato, as rédeas da região e frear o desmatamento. O bioma amazônico encolheu 17% nos últimos 30 anos. “Há dois importantes instrumentos de controle que o ministério conseguiu incluir na proposta. Um deles é a obrigação imposta aos futuros proprietários de não desmatar uma área superior aos 20% permitidos pela legislação ambiental, sob pena de perder a posse da terra. O outro é o de obrigá-los a recuperar o passivo ambiental, caso os ocupantes já tenham derrubado parte da reserva legal do lote”, comenta. “Além disso, conheceremos quem ocupa a área e ele poderá ser responsabilizado criminalmente por eventuais crimes ambientais. Sem a regularização, isso é quase impossível, porque as terras pertencem, na realidade, ao patrimônio da União.”

A decisão de incluir a regularização de lotes maiores desagradou até mesmo aos antigos aliados do governo Lula, como a senadora Marina Silva (PT-AC), ministra do Meio Ambiente entre 2003 e maio de 2008. Em pronunciamento no Senado, uma semana após a entrega da MP 458 ao Congresso, ela condenou o fato de o benefício da medida ser estendido aos lotes com mais de quatro módulos fiscais (até 400 hectares). “A MP regulariza ocupações de áreas até quinze módulos fiscais, superior ao que tem sido considerado historicamente como demanda legítima e socialmente justa. Pior, ela facilita a venda de terras com área superior a quinze módulos ao estabelecer direito de preferência nas licitações.”

Até 2004, a legislação brasileira admitia a regularização com dispensa de licitação de áreas com menos de 100 hectares. Com a aprovação da chamada “MP do Bem”, em 2005, as propriedades de até 500 hectares passaram a ter os mesmos benefícios. Dois anos depois, o governo federal aprovou outra medida provisória, redigida à imagem e semelhança de um projeto de lei anterior, de autoria do deputado Asdrúbal Bentes (PMDB-PA), tornando ainda mais flexível a legislação. Desde então, lotes com até 1,5 mil hectares passaram a ficar dispensados do processo de licitação pública, no qual o candidato à compra que oferece o maior valor leva o terreno. À época, Marina votou contra a proposta, que batizou de “MP da Grilagem”.

Para o advogado Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira para a Reforma Agrária e militante do PSOL, a nova medida provisória redigida pelo governo deve “legitimar a histórica grilagem de terras na Amazônia”, além de não atender às determinações da Constituição Federal. “As terras públicas devem ser empregadas prioritariamente no reconhecimento dos territórios indígenas e dos assentamentos para a reforma agrária. Em vez disso, o governo está privilegiando quem ocupou a Amazônia ilegalmente, quem está há anos destruindo a floresta.” A história da grilagem de terras públicas no Brasil remonta ao século XIX. Começou logo após a promulgação da Lei de Terras de 1850, que proibiu a posse de áreas devolutas (sem registro de propriedade em cartório), considerando-as patrimônio do Império. A Constituição Republicana de 1891 transferiu aos estados as terras públicas devolutas. Sob controle da União, restaram apenas as faixas de fronteira e da Marinha. No entanto, nem o governo federal nem os estados discriminaram ou deram destinação à maior parte dos terrenos.

De acordo com Ariosvaldo Umbelino de Oliveira, professor de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP), estima-se que, em todo o País, a área ocupada por terras públicas devolutas seja superior a 172 milhões de hectares, um quinto do território nacional. São áreas cercadas por posseiros e grileiros, mas que não existem formalmente. O governo muitas vezes não sabe sequer quem se apropriou delas, legal ou ilegalmente. Hoje, na Amazônia, há mais de 96 milhões de hectares de terras devolutas, nos cálculos do geógrafo. A MP 458 não deve interferir diretamente na situação dessas áreas. Isto porque elas ainda aguardam as iniciativas estaduais de reconhecê-las e discriminá-las, embora o ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, assegure haver um acordo com os governadores para que as ocupações nessas áreas também possam ser legalizadas. “O posseiro não sabe se ocupou uma área da União ou do estado. Quando nos procurar para pedir a posse da terra, se identificarmos que a área é devoluta e pertence ao estado, vamos encaminhá-lo às autoridades competentes para que ele possa se regularizar”, explica. “O processo será orientado pela demanda.”

Certo é que a medida terá efeito nos 67,4 milhões de hectares declarados como patrimônio da União e que não foram destinados para nenhuma finalidade até agora. Essa área foi incorporada pelo governo federal em abril de 1971, quando o ditador Emílio Garrastazu Médici assinou o Decreto-Lei nº 1.164, transferindo à União o domínio de uma faixa de 100 quilômetros de largura de cada lado das rodovias federais da Amazônia Legal. A área equivalia a cerca de 105 milhões de hectares, mas parte do montante já foi doada ou vendida pelo governo, principalmente nos projetos de colonização e desenvolvimento econômico local patrocinados pela ditadura. Foi justamente nessas terras próximas às rodovias que a grilagem se concentrou, até pela facilidade de transportar madeira ou de escoar a produção das atividades agropecuárias. “Na primeira metade do século XX, os invasores cercavam a área e obtinham títulos falsos em cartórios, corrompendo funcionários públicos ou trapaceando com documentos envelhecidos com a ajuda dos grilos”, comenta Umbelino. “Mas o procedimento de grilagem foi se sofisticando ao longo dos anos. Os grileiros passaram a utilizar a estratégia de tentar regularizar as terras por meio de ‘laranjas’, via falsas procurações”, explica Umbelino.

As procurações eram utilizadas para pedir a “compra” da área, negociação que raramente avançava na burocracia estatal. O máximo que se podia adquirir legalmente e sem consulta ao Parlamento, entre 1946 e 1967, era uma extensão de 10 mil hectares. Depois, essa área foi reduzida, entre 1967 e 1988, para 3 mil hectares. Após a Constituição de 1988, passou a 2,5 mil hectares. Enquanto o governo não apresentava uma definição sobre a venda da terra, os invasores se instalavam, derrubando parte da mata na tentativa de legitimar a ocupação.

Muitas empresas e fazendeiros ergueram verdadeiros latifúndios na floresta amazônica por controlar a terra reivindicada por dezenas de posseiros, na prática “laranjas” que só figuravam no papel. “O mapa fundiário de vários municípios da Amazônia Legal revela como as demarcações eram fictícias, quase sempre em quadrados ou retângulos perfeitos. Em Barra do Garças (MT), por exemplo, uma empresa de colonização controlava mais de 40 lotes de posseiros fictícios”, afirma Umbelino, ao mostrar um mapa com a distribuição das terras na região.

A denúncia desse expediente levou à introdução, nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, de um artigo que prevê a revisão, por uma comissão do Congresso, de “todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a 3 mil hectares, realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987”. Mas até hoje ela nunca foi feita.

Mesmo com a limitação imposta pelos constituintes, de reduzir a área que o governo federal pode vender sem aprovação do Congresso, a prática não deixou de acontecer. E o fenômeno propiciou o avanço das fronteiras agrícolas pela floresta amazônica. Hoje, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006, um quinto do rebanho bovino brasileiro encontra-se na Região Norte, onde predomina o bioma amazônico. No meio da floresta, também há plantações de soja, embora a produção de grãos seja considerada residual, em comparação com a produção no Centro-Oeste, no qual o Cerrado oferece melhores condições de plantio. Ambas as atividades costumam estar associadas à extração ilegal da madeira, que abre terreno para a formação de pastos e lavouras. Historicamente, a elevação dos preços dessas commodities no mercado internacional costuma vir associada a um ritmo mais agressivo de desmatamento da floresta, uma tendência que só começou a ser revertida a partir de meados de 2008. Dados de monitoramento por satélite divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam que o desmatamento na Amazônia Legal caiu 70% entre novembro de 2008 e janeiro deste ano, quando comparado ao mesmo trimestre do ano anterior. Segundo o ministro Minc, a queda na devastação se deve à intensificação da fiscalização nos 36 municípios mais devastados e à resolução do Banco Central que vetou crédito a desmatadores.

De acordo com o engenheiro florestal Paulo Barreto, mestre em Ciências Florestais pela Universidade de Yale (Estados Unidos) e pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o próprio Estado brasileiro contribuiu, durante muito tempo, para a ocupação ilegal de terras públicas por conceder aos posseiros os Certificados de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), um documento emitido pelo Incra a quem se candidatava a comprar a área ocupada ilegalmente. “Com o respaldo desse documento precário, o portador conseguia obter crédito nos bancos e aprovar planos de manejo para derrubar árvores e extrair madeira legalmente”, comenta. Em dezembro de 2004, um desses esquemas de corrupção foi denunciado e ganhou grande projeção no noticiário nacional. À época, a Operação Faroeste, da Polícia Federal, desmantelou quadrilhas especializadas em grilagem e prendeu oito servidores do Incra no Pará, inclusive o então superintendente do órgão. O escândalo motivou o instituto a publicar a Portaria nº 10, suspendendo a emissão de novos CCIRs, que acabavam servindo como título de propriedade de áreas griladas.

Barreto, do Imazon, considera inevitável uma regularização fundiária na região, mas critica as facilidades dadas pelo governo para a regularização das ocupações ilegais. “Não acho justo o governo doar terras de até 100 hectares, dar descontos no preço dos imóveis de 100 a 400 hectares e facilitar o pagamento dos imóveis rurais num prazo de vinte anos. Os beneficiários ocuparam ilegalmente as terras públicas por anos, lucraram com a extração da madeira e com as atividades agropecuárias e nunca ressarciram a União por isso”, comenta.

Na avaliação de Cassel, a lei só traz benefícios aos pequenos posseiros. “Quase 90% das ocupações ilegais na Amazônia correspondem a lotes inferiores a 400 hectares. Em diversos momentos da história, o governo federal atraiu trabalhadores para a Amazônia, do ciclo da borracha aos programas de colonização. Hoje, 6,7 milhões de habitantes vivem nas zonas rurais da Amazônia Legal, e não podemos simplesmente expulsá-los e ignorar os graves conflitos fundiários”, afirma o ministro do Desenvolvimento Agrário. “Quem ocupa áreas maiores pagará o valor de mercado das terras. Acima de 1,5 mil hectares, só poderá comprar por meio de licitação. Também é injustificável o temor de que a regularização promova uma corrida por novas ocupações ilegais. A lei é clara ao dizer que somente poderão ser legalizadas as áreas ocupadas e reivindicadas antes de dezembro de 2004.”

Apesar de quase 90% dos lotes ocupados terem menos de 400 hectares, como afirma o ministro, um levantamento feito pela Associação dos Servidores do Incra revela que eles ocupam apenas 19% da extensão ocupada ilegalmente. Entre as propriedades médias (de 400 a 1,5 mil hectares), os imóveis correspondem a 10% do total e 18% da área. Acima de 1,5 mil hectares, os lotes somam apenas 6% do total, mas abrangem uma área de 63%. Os dados foram divulgados com base no Sistema Nacional de Cadastro Rural do Incra, um retrato da situação fundiária em outubro de 2003. “Esses porcentuais não devem ter se alterado muito porque revelam um processo de décadas. E eles mostram claramente que os maiores beneficiados serão os grandes grileiros”, diz Umbelino, da USP. De acordo com Minc, ainda que a regularização beneficie antigos desmatadores e grileiros, ela é fundamental para reverter o quadro de devastação na Amazônia. “A verdade é que não existe política ambiental viável em nenhum lugar marcado pelo caos fundiário e pela ilegalidade”, avalia Minc. “Hoje, por exemplo, temos uma linha de crédito de 1 bilhão de reais, com carência de pagamento de um ano e juros abaixo de 4,2% ao ano, para os proprietários rurais recuperarem as áreas de reserva legal destruídas, mas o governo não pode conceder esse crédito a quem não é o proprietário legal da terra.”

O físico José Goldemberg, ex-secretário de Meio Ambiente de São Paulo no governo Alckmin, concorda com a avaliação. “Há dez anos, a cobertura vegetal da Mata Atlântica, em São Paulo correspondia a 13% do território original, e hoje está em 14%. Investimos maciçamente nos projetos de regularização fundiária em áreas densamente povoadas, como Cubatão, e conseguimos reverter o desmatamento”, comenta. “É fundamental aliar a regularização fundiária a estímulos para o reflorestamento das áreas degradadas.”

A desconfiança entre os parlamentares da bancada verde é grande. “A medida provisória foi lançada de maneira precipitada. Apenas dois estados, Rondônia e Acre, concluíram os estudos do zoneamento ecológico-econômico da floresta. E é este documento que revela as áreas estratégicas para a criação de novas unidades de conservação, terras indígenas e áreas de segurança do Exército”, afirma o deputado maranhense José Sarney Filho, líder da bancada do PV na Câmara. “Além disso, temos motivos para desconfiar que, com a legalização dessas terras, elas possam servir como um instrumento para a ‘lavagem’ da madeira extraída ilegalmente de outras áreas da floresta.”

Diante de tantos obstáculos e questionamentos, o deputado Asdrúbal Mendes (PMDB-PA), relator da MP 458 na Câmara, acha difícil a aprovação da proposta no prazo inicial de 60 dias. “Provavelmente, teremos de pedir prorrogação para organizar e avaliar todas as propostas de emenda.” Ainda que a redação final do texto seja extremamente cautelosa na fixação de regras, um fantasma assombra muitos ambientalistas: a possibilidade de o caos fundiário voltar a grassar pela floresta caso a administração federal seja omissa em relação a novas ocupações ilegais. Atualmente, segundo Minc, apenas 500 funcionários do Ibama e do Instituto Chico Mendes fiscalizam os mais de 500 milhões de hectares da Amazônia Legal.

“Está muito aquém do necessário, mas estamos preparando um concurso para contratar outros mil funcionários nos dois órgãos”, anuncia o ministro. “O edital deve ser publicado no fim de abril. Também recebi a promessa do presidente Lula de poder contratar mais 2 mil fiscais nos próximos anos. A Polícia Federal também abrirá um concurso para novos agentes atuarem na Amazônia. O anúncio deve sair ainda no primeiro semestre.”

Até lá, a MP da regularização fundiária pode ter sido votada no Congresso. A redação final do texto é que ainda parece ser uma incógnita, diante da absoluta falta de consenso sobre o tema.

(Crédito da foto: Alberto Cesar/Greenpeace/AP)

Fonte: Carta Capital

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