domingo, 22 de março de 2009

O professor Declev e a secretária Costin

::

fonte: Vi o Mundo

“Caro(a) professor(a),

Iniciamos o ano letivo de 2009 propondo a parceria em um projeto ousado e inovador (1) que, temos certeza, fará a diferença no processo de aprendizagem de nossos alunos, contribuindo de forma efetiva para seu sucesso escolar e sua participação ativa e crítica em nossa sociedade (2).

Consideramos que a função básica da escola é possibilitar aos alunos desenvolverem de forma plena todo o seu potencial intelectual, incentivando-os em suas tentativas, aplaudindo seus acertos e não os deixando desestimular quando, por vezes, não obtiverem sucesso (3).

Nessa perspectiva, é que resolvemos dedicar o início do ano letivo a um grande trabalho de revisão dos principais conteúdos (4) que nossos alunos aprenderam no ano anterior, de maneira que possamos detectar, logo no começo, as necessidades específicas de cada um deles (5), os obstáculos a serem superados em seu processo de aprendizagem e, dessa forma, possibilitar a você, professor, a realização de um planejamento centrado na realidade de sua sala de aula (6).

Estamos oferecendo a você, professor, um material que servirá de apoio ao seu trabalho nesse período de revisão, comum a toda a Rede (7), ao fim do qual serão aplicadas provas de Língua Portuguesa e de Matemática (8), cujo resultado nos oferecerá subsídios para termos um retrato consistente do nosso alunado (9) e, dessa forma, podermos estabelecer nossas prioridades (10) para o ano letivo que se inicia.

O trabalho a ser desenvolvido com os alunos nesse período de revisão deverá ter como enfoque prioritário as questões relativas à leitura e ao desenvolvimento do raciocínio lógico, por entendermos que são esses os dois pilares fundamentais de todo processo de ensino-aprendizagem.

Portanto, todo o trabalho desenvolvido pelos professores das diversas áreas do conhecimento, nesse período, deve ter como foco a questão da leitura e a interpretação de texto (11), instrumentos essenciais para que os alunos possam se apropriar do universo amplo e diversificado de conhecimentos que a escola apresenta e possam desenvolver as habilidades necessárias para sua construção segura e efetiva, tornando-se sujeitos autônomos, capazes de tomar decisões e poder trilhar com segurança o caminho escolhido (12).

Bom ano letivo para todos.

Claudia Costin

Secretária Municipal de Educação”



Ai meu Deus… dai-me sabedoria, discernimento e muita calma nesta hora.

Por partes:

(1) … propondo a parceria em um projeto ousado e inovador …

Prezada Secretária, “parceria” é, segundo o dicionário: “Reunião de pessoas por interesse comum; sociedade, companhia”.

Algo que recebemos vindo de cima, empurrado em nossas gargantas abaixo, não é parceria, é imposição. Isso é quase que chamar de parceria a relação entre o produtor de Foie Gras e o coitado do ganso.

E, sinceramente, o que é “ousado e inovador” em se fazer uma revisão de conteúdos e aplicar uma prova de múltipla escolha de Português e de Matemática?!?

SEMPRE se fez isso. SEMPRE. Todo ano o município aplica uma prova de Português e de Matemática para diagnóstico da rede. Português e Matemática. Procure nos arquivos por aí.

(2) … contribuindo de forma efetiva para seu sucesso escolar e sua participação ativa e crítica em nossa sociedade …

Sinceramente, secretária, não acredito que um projeto baseado em conteúdos e em provas de múltipla escolha de Portugês e Matemática – iguais a toda a rede do Rio de Janeiro – seja capaz de contribuir para o sucesso escolar do aluno e muito menos para a sua participação ativa e crítica em sociedade.

A sua participação ativa e crítica passa exatamente por um trabalho extremo oposto a isso.

(3) … não os deixando desestimular quando, por vezes, não obtiverem sucesso.

Este parágrafo inteiro é tão retórico que nem merecia ser comentado. Mas só para não passar em branco, vale olharmos esta última frase.

A primeira ação – aliás, foi até uma pré-ação - deste governo, foi acabar com o que foi denominado popularmente por “aprovação automática”.

Independente da minha opinião sobre a reprovação – sou contra, mas ainda terei oportunidade de destrinchar os porquês – a reprovação não é, definitivamente, a melhor forma de não desestimular um aluno quando não “obtém sucesso”. Como se fosse única a forma de “obter sucesso” em educação.

Se procurarmos nos mais modernos pensadores em educação, assim como entre os fazedores, a tendência é ser contra a reprovação, justamente por ser historicamente injusta e ineficaz.

É claro que a promoção automática simples e só, sem mudar a escola, não faz sentido. Mas a reprovação simples e só, faz menos ainda.

(4) … trabalho de revisão dos principais conteúdos …

Conteúdos? Isso é que é “ousado e inovador”?

Eu tenho trabalhado nestes meus 10 anos de magistério justamente no sentido contrário disso, por acreditar que a necessidade que o professor tem de “dar a matéria” é ineficiente em uma educação de qualidade…

Esses “conteúdos” históricos são, muitas vezes, socialmente injustos, subjetivamente sem sentido e de uma quantidade despropositada.

E, ao final, só servem para produzir um grande filtro no vestibular – que cobra tais conteúdos e deixam passar aqueles que tiveram estrutura de vida condizente para decorá-los.

(5) … detectar as necessidades específicas de cada um deles …

As “necessidades específicas de cada um deles” está muuuuuuuito anterior aos “conteúdos”.

(6) … possibilitar a você, professor, a realização de um planejamento centrado na realidade de sua sala de aula …

Agradeço muito a possibilidade, secretária, mas TODO planejamento que fazemos - com exceção dos maus professores, mas aí não tem jeito mesmo – é centrado na realidade de nossa sala de aula!

E a realidade da sala de aula, secretária, NÃO nos é dada por uma prova externa de múltipla escolha, mas por inúmeras formas de diagnóstico que nós fazemos naturalmente, pois que isso é inerente à nossa profissão: conversas com os colegas, conversas com os alunos, redações, provas (sim, mas nossas!), revisões de matérias, exercícios, deveres de casa, conversas com responsáveis, observações in loco, etc.

Por fim, secretária, a realidade de minha sala de aula – e de meus alunos – é cruel: salas abarrotadas (35-40 adolescentes); quentes, muito quentes; barulhentas ao extremo; empoeiradas; alunos carentes de tudo o que a sociedade não dá para eles e o governo idem.

Não precisamos de uma prova pra saber isso, certo?

(7) … material que servirá de apoio ao seu trabalho nesse período de revisão, comum a toda a Rede …

Ora, ora… a Rede tem mais de 1.000 (mil) escolas, situadas em áreas tão díspares como a Zona Sul, a Zona Oeste e o Caju; áreas altamente urbanizadas e áreas praticamente rurais; áreas dominadas por tráfico de todas as facções…

E você acha que está nos propondo um projeto “ousado e inovador” baseado em revisão de “conteúdos” iguais “a toda Rede”?!?

Oras, secretária, não me faça rir!!!

Depois, você vai dizer por aí que os professores do município são fracos e por isso a educação está tão ruim!

Faça-me o favor!

(8) … provas de Língua Portuguesa e de Matemática …

Faço a mesma pergunta anterior, com um final diferente: você acha que está nos propondo um projeto “ousado e inovador” baseado em provas de Língua Portugues e de Matemática?!?

Eu já escrevi sobre o que acho da priorização destas disciplinas. Acho bom a senhora dar uma lida e, quiçá, achará algo um pouco mais inovador e ousado para implantar:

O que é uma boa educação;

Sou contra a priorização do Português e da Matemática.

(9) … retrato consistente do nosso alunado …

Retrato consistente do nosso alunado, secretária, sinto muito dizê-lo, mas quem tem são os professores que estão lá dentro, em sala. E temos estratégias para conseguir isso, além das já citadas no número 6.

Se a senhora se dignasse a perguntar, poderíamos responder.

Estava eu conversando com uma colega sobre esse assunto e comentei de que eu sempre procuro fazer um (re)conhecimento dos meus alunos no início do ano. Disse a ela que este ano iniciei minhas atividades (apesar do caderninho de revisão que, confesso, não utilizei…) com uma redação.

Queria com a redação ver a capacidade deles de elaborar um texto, sua escrita, lógica de pensamento, além de aproveitar para conhecê-los e fazerem-se (re)conhecer.

Para isso, disse a ela, o tema da redação proposta foi “Quem sou eu?”. Na redação eles podem escrever sobre tudo da vida deles que queiram. Tudo.

Qual não foi nossa surpresa esperada quando ela me mostrou suas atividades iniciais… adivinha? O tema era “Quem sou eu?”!!!

Preciso dizer mais alguma coisa?

(10) … podermos estabelecer nossas prioridades …

Nossas de quem, secretária? As suas, pelo jeito.

As minhas prioridades são outras. Veja alguns outros escritos meus, se quiser saber: Manter a criança na escola, mas qual escola?

Por outro lado, as suas prioridades já se nos farão sentir, pois soube hoje que a senhora nos retirou a gratificação “difícil acesso” e pretende ainda retirar a gratificação “bônus cultura”. Além do nosso carinhosamente apelidado de “Vale Perú”…

É uma ótima estratégia e fantástica prioridade: entrar diminuindo o salário do professor. Como não pode diminuir o próprio, come pelas beiradas e retira as gratificações.

E depois vem dizendo que tem “parceria”.

Sem comentários.

(11) … todo o trabalho desenvolvido pelos professores das diversas áreas do conhecimento, nesse período, deve ter como foco a questão da leitura e a interpretação de texto …

Prezada secretária, como creio que você nunca deve ter pisado numa sala de aula de ensino fundamental de uma escola pública de periferia, deixa eu te dizer uma novidade: TODOS os professores das diversas áreas do conhecimento têm como foco as questões da leitura e interpretação de texto DURANTE TODO O ANO.

Simples assim.

(12) … tornando-se sujeitos autônomos, capazes de tomar decisões e poder trilhar com segurança o caminho escolhido …

Esta é extremamente paradoxal.

Você acha que, com estas ações, o aluno se tornará sujeito autônomo, capaz de tomar decisões e de trilhar o caminho escolhido…

* retirando toda a autonomia da escola e do professor?!?
* Idiotizando o professor com os textos e “instruções” recebidas?!?
* Diminuindo o salário do professor?!?
* Igualando todas as escolas da Rede com um caderninho de revisão igual e iguais provas de múltipla escolha de somente Portugês e Matemática?!?
* Ignorando as especificidades de todos os diferentes?!?
* Não dando a eles a opção do que querem e como querem estudar?!?
* Não dando às escolas autonomia para seu trabalho?!?
* Não dando ao bom professor crédito para suas ações que dão certo?!?
* Sem nem procurar saber dos bons professores suas ações que dão certo?!?
* Sem buscar as reais necessidades das escolas, alunos, professores?!?

Senhora secretária: eu sou um ser autônomo, capaz de tomar minhas próprias decisões e de trilhar com segurança o caminho que escolhi.

E este caminho é o de uma educação diferente do que existe, na qual os alunos têm vidas próprias; na qual todas as disciplinas têm importância; na qual as formas de ver e ler o mundo vão muito além do papel, mas que nem por isso a escrita deixa de ser extremamente importante; na qual provas de múltipla escolha como as que recebemos não tem nenhum valor; na qual a sala de aula ideal NÃO é abarrotada de gente…

E gostaria de ser respeitado por isso.

Declev Reynier Dib-Ferreira

Para ler a íntegra, vá ao Diário do Professor


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: