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O sr. Bernanke espalha o fogo
por Michael Hudson, no Counterpunch, 17/03/2009
No programa 60 Minutos, da CBS, no dia 15 de março, o presidente do Banco Central, Ben Bernanke, usou a falsa analogia já popularizada pelo presidente Obama em seu discurso sobre o estado da quase-União. Ele comparou o setor financeiro a uma casa em chamas -- o que é justo, já que está destruindo o valor das propriedades, levando a hipotecas, abandono de moradias, furto (com a retirada dos fios de cobre e outros) e com certeza a uma devastação econômica. O problema com essa analogia é sobre a localização desse prédio e sua relação com "outras casas" (isto é, o resto da economia).
O sr. Bernanke perguntou o que pessoas deveriam fazer se um fumante irresponsável provocasse fogo em sua cama para queimar a casa. O vizinho deveria dizer, "é culpa dele, deixe a casa queimar?" Isso ameaçaria toda a vizinhança com o incêndio, o sr. Bernanke explicou. A implicação, ele afirmou, é que a recuperação econômica requer um sistema bancário e financeiro forte. E foi o que ele disse: a economia não vai se recuperar sem ainda mais crédito e divida. E isso requer trilhões e trilhões de dólares dados pelos "vizinhos" ao cara irresponsável que queimou sua própria casa. É aí que a analogia sai dos trilhos.
Mas assistindo o 60 Minutos minha mulher comentou, "é justamente o que Obama disse outro dia. O que eles fazem, se reúnem e concordam em popularizar uma metáfora?". Eles parecem ter criado uma imagem para forçar os americanos a apoiar uma política com a qual não concordam, quando muitos gostariam de deixar a casa financeira (AIG, Citibank, Bank of America/Countrywide) queimar.
O que é falso nessa analogia? Para início de conversa, os bancos não ficam na mesma vizinhança onde a maioria das pessoas vive. Eles ficam em um castelo na colina, mandando na cidade lá embaixo. Eles podem pegar fogo para permitir que a colina seja retomada pela natureza, em vez de exporem sua montanha de dívidas perante os moradores da cidade.
Trata-se de uma analogia falsa quanto à política dos Estados Unidos. De fato, o Tesouro e o Banco Central não estão "apagando o fogo". Eles estão assumindo o controle de casas que não foram queimadas, retirando os donos e ocupantes e dando a propriedade para aqueles que já "queimaram suas próprias casas". O governo não faz o papel de bombeiro. "Apagar o incêndio" seria cancelar as dívidas da economia -- as dívidas responsáveis pelo fogo.
Para o sr. Bernanke a "solução" para o problema da dívida é fazer os bancos emprestarem de novo. Ele está espalhando a dívida-fogo. O governo vai emprestar para os "vizinhos ameaçados" dinheiro suficiente para que eles paguem aos donos dos castelos o que devem com os juros estipulados. Esse dinheiro não está pegando fogo; o dinheiro da vizinhança (na forma de impostos) está sendo queimado [pelo governo].
O sr. Bernanke explicou ao público que o objetivo dessa política é ajudar a economia a voltar "ao normal". Na mesma linha que o sr. Paulson [o secretário do Tesouro] havia assumido no verão passado, quando a "normalidade" era definida como um crescimento exponencial da dívida. Ele falou, então, de uma recuperação "sustentável". Mas a mágica dos interesses que se combinam [dos banqueiros e contribuintes] não é sustentável. É uma metáfora falsa.
O sr. Bernanke depois abandonou o campo da metáfora para dar uma explicação falsa sobre o balanço de pagamentos e os encontros da Gangue dos 20 na Europa. Na sexta-feira, o primeiro-ministro da China expressou preocupação com a saúde da economia americana, na qual a China reciclou quase 2 trilhões de dólares para evitar que o yuan se valorizasse em relação ao dólar. O medo é de que apesar dessa pesada reciclagem de dólares por bancos centrais, o valor do dólar vai enfraquecer por causa do déficit nas transações comerciais [os Estados Unidos importam muito mais do que exportam] e dos gastos militares que continuam bombeando dólares na economia mundial por causa das ações que se transferem do Iraque ao Afeganistão e Paquistão.
Segundo o que o presidente do Banco Central explicou na CBS, os Estados Unidos deveriam manter seus mercados atrativos para os "poupadores chineses". A imagem sugerida repetidamente é de que há um excesso mundial de poupança. É o que supostamente encheu os bancos americanos e Wall Street com tanto dinheiro que eles foram obrigados a aplicar em investimentos cada vez mais arriscados. "Eles nos forçaram a isso", é a mensagem cifrada.
Uma pessoa é levada a pensar que o sr. Bernanke não sabe nada sobre balanço de pagamentos ou sobre como funciona o sistema monetário global. Aqui está o que acontece, realmente. A economia dos Estados Unidos transfere poupança para bancos centrais estrangeiros ao gastar em bases militares no Exterior. (O 60 Minutos mostrou guindastes movendo pacotes de 40 milhões de dólares dentro do Banco Central de Nova York da mesma forma que máquinas similares fazem no Iraque para comprar apoio de grupos políticos.) Os consumidores americanos compram mais do que o país exporta. Quando esses dólares extras são trocados nos bancos estrangeiros por moeda local, os bancos os enviam para os bancos centrais -- que passam a ter um problema.
Lembram quando um ex-secretário americano, John Connolly, disse que "o déficit é nosso, mas o problema é deles?". Ele quis dizer que os Estados Unidos estavam gastando fundos (naquela época principalmente no Sudeste asiático) que acabavam em bancos centrais, que enfrentavam um dilema: se eles deixassem "o mercado" lidar com esses dólares, suas próprias moedas valorizariam. Isso ameaçaria as exportações desses países, que ficariam muito caras no mercado internacional, o que provocaria desemprego doméstico. Assim sendo, governos estrangeiros decidiram reciclar seus dólares mantendo o valor em moeda americana -- principalmente em papéis do Tesouro e, quando esses papéis acabaram, em papéis federais como os da Fannie Mae e Freddie Mac.
E assim o "fogo" na esfera internacional era o déficit americano causado por gastos militares e déficit da balança comercial. Isso não tem nada a ver com consumidores chineses que estão poupando demais. Eram os bancos centrais que estavam fazendo poupança, carregados com um estoque de dólares americanos como se fossem uma batata quente. Mas raramente se ouve uma autoridade americano mencionar o déficit militar nacional. É como se a popupança externa viesse primeiro, seguida de uma "decisão de mercado" de colocá-la na economia dos Estados Unidos, "motor do crescimento mundial".
O que vem primeiro, na verdade, é o déficit na balança de pagamentos dos Estados Unidos, bombeando dólares extras na economia mundial, que os bancos centrais se veem obrigados a reciclar dentro da esfera do dólar. (Esse fenômeno eu discuto em Super Imperialismo: A estratégia econômica do império americano e a fratura global).
Quanto ao "crédito-extra" que Wall Street emprestou, foi criado de ar. Pelo menos sobre isso o sr. Bernanke foi claro, quando explicou que o Banco Central "cria depósitos" para os bancos-membros assim como esses bancos "criam depósitos" para seus próprios clientes com algumas tecladas no computador.
O fato é que o público americano está sendo alimentado com uma mitologia cuidadosamente preparada (com certeza foi "testada" em "grupos de resposta" para ver quais as imagens seriam as mais eficazes) para enganá-lo quanto à natureza dos problemas financeiros -- para enganá-lo de forma a fazer com que as políticas de hoje recebam apoio dos eleitores.
Mas essa mitologia é baseada em analogias falsas, não na realidade econômica. É desenhada para fazer Wall Street parecer como salvadora, não como a incendiária -- e para mostrar o Tesouro e o Banco Central como protetores do bem-estar dos cidadãos americanos e não como aqueles que jogam bilhões de dólares nos bancos cujas apostas causaram a crise.
Enquanto a entrevista do sr. Bernanke ia ao ar no 60 Minutos, o governo estava dando dinheiro aos clientes que ganharam apostas contra a seguradora AIG. Para desviar o descontentamento dos eleitores com a decisão de dar 160 bilhões de dólares para a AIG, o Tesouro finalmente deu os nomes daqueles que ganharam com as perdas da companhia. Confirmando rumores que circulavam nos últimos meses, a própria empresa do sr. Paulson, Goldman Sachs, estava no topo da lista com 13 bilhões! Seguida pela Merrill Lynch (7 bilhões), Bank of America (5 bilhões), Citigroup (2,3 bilhões) e pelo emprestador de junk, Wachovia (1,5 bilhão). De forma que o secretário do Tesouro, sr. Paulson, parece ter representado não o interesse dos Estados Unidos, mas o de sua própria empresa e seus vizinhos em Wall Street.
Esses vizinhos receberam papeis do Tesouro em transações de "lixo por dinheiro". O resto da economia vai pagar juros sobre essa dívida pelo próximo século. É isso o que causa "deflação de dívida". Dinheiro é desviado de gastos em bens e serviços para o pagamento de juros e impostos. E assim o Tesouro espalha o fogo, em vez de apagá-lo.
Michael Hudson is a former Wall Street economist. A Distinguished Research Professor at University of Missouri, Kansas City (UMKC), he is the author of many books, including Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002) He can be reached via his website, mh@michael-hudson.com
Fonte: Vi o Mundo
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