terça-feira, 18 de agosto de 2009

Vendem-se órgãos

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Vendem-se órgãos


O tráfico de órgãos é uma indústria globalizada que transforma habitantes de países pobres em peças de reposição para os corpos do Primeiro Mundo. E tem tudo para estar bombando no Brasil.

Vítimas do tráfico de rins na Índia, onde órgão
é vendido por US$ 1.500 (foto: Reuters/Asim Tanveer)


(*) Colaborou Mariana Lucena de Queiroz

O estudante Roberto das Dores bem que desconfiou quando a loiraça de bunda empinada, botas matadoras e seios saltitantes que ele havia acabado de conhecer na balada sugeriu emendar a noite no motel. Mas achou que a loira valia o risco. No quarto, aceitou um drinque antes de ir para a cama e, puf, tudo sumiu. Roberto só voltou a si na manhã seguinte dentro de uma banheira cheia de gelo, com duas cicatrizes costuradas no lugar onde deveriam estar os seus rins. A polícia localizaria os rins de Ricardo três dias depois, guardados numa caixa de isopor ao lado do coração de Lucinha, que se perdeu dos pais no shopping center, e dos pulmões do órfão Pedrinho, adotado por um casal de estrangeiros.

Roberto, Lucia e Pedrinho nunca existiram. Loiras apetitosas que roubam rins em motéis são tão irreais quanto traficantes de órgãos que sequestram crianças em shopping centers ou frequentam orfanatos do Terceiro Mundo. Histórias como essas contêm tantos furos que é possível brincar de jogo dos sete erros com elas.

Erro número um: remoção de rins em um quarto de motel. “Transplante não é um aborto que se possa fazer numa garagem”, explica o nefrologista Valter Duro Garcia, presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos). O transplante é um procedimento complexo, que dificilmente poderia dar certo fora de um centro cirúrgico com uma equipe treinada de médicos e enfermeiros. Mesmo que um megaempresário inescrupuloso como o Sr. Burns, acometido de insuficiência renal, resolvesse montar um hospital formado só por médicos e enfermeiros corruptos, o roubo de órgãos continuaria a não ser a melhor opção para conseguir um transplante. Não haveria como saber se o estudante sedado no motel tinha sangue compatível com o seu e nem se era uma pessoa saudável: vários problemas de saúde, da hepatite ao câncer, podem ser transmitidos por um doador doente. Assaltar cadáveres em necrotérios também não seria uma alternativa viável, já que, com exceção das córneas, a maioria dos órgãos torna-se imprestável para o transplante assim que o coração para de bater. Por tudo isso, a melhor e mais econômica opção para o Sr. Burns seria mesmo pagar pelo rim de um doador voluntário — e desesperado.

Oculta sob lendas urbanas, a cara verdadeira do tráfico de órgãos acaba se revelando mais chocante e deprimente do que qualquer boato, como provou uma investigação da Polícia Federal em Recife, em dezembro de 2003. A Operação Bisturi revelou que uma quadrilha formada por um militar do exército israelense sobrevivente do Holocausto e um capitão reformado da Polícia Militar, entre outros, não precisou esconder sedativos em bebidas para obter os rins de dezenas de moradores da periferia de Recife. A arma da quadrilha foi explorar a eficiente combinação entre miséria, sonhos e fome. Em troca de cachês que começaram em US$ 10 mil e foram caindo até chegar em US$ 3 mil (conforme aumentava a oferta de desesperados), os brasileiros aceitavam viajar até Durban, na África do Sul. Ali, após uma semana de hospedagem num belo flat de luxo e mais alguns dias em um dos melhores hospitais do país, voltavam para o Brasil tendo deixado um de seus rins em corpos de israelenses e norte-americanos.
Venderam rins para comprar motos e "raparigar" prostitutas
Empolgados com a negociação, alguns dos doadores passaram a aliciadores, levando amigos, irmãos, filhos e esposas para a rota do rim e despertando a inveja de vizinhos que não haviam sido aceitos no negócio por terem sido reprovados na bateria de exames médicos exigida pelos compradores. Em troca de um pedaço de seus corpos, as vítimas conseguiram dinheiro para pagar dívidas, comprar motos ou carros populares, reformar a casa, garantir carne na geladeira para o mês inteiro e até “raparigar” prostitutas, como relata o jornalista Julio Ludemir no livro Rim por Rim (Record). Os traficantes pretendiam abandonar a rota sul-africana e fixar-se no Brasil, utilizando um hospital de Recife para a realização de transplantes clandestinos, mas acabaram presos antes de levar o plano a cabo.

A conexão Recife-Durban foi destaque na CPI do Tráfico de Órgãos realizada em 2004 na Câmara dos Deputados e evidenciou que o Brasil havia entrado de corpo(s) e alma no mercado internacional do mercado negro de órgãos. Não que o País fosse um novato nessa área. Dados coletados pelo projeto de pesquisa Organs Watch, coordenado pela antropóloga Nancy Scheper-Hughes, pesquisadora da Universidade de Berkeley, na Califórnia, revelam que a pátria amada vinha colecionando histórias de roubo de órgãos e tecidos de cadáveres desde o regime militar. Em 2000, houve o caso de Paulo Veronesi Pavesi, menino de dez anos ferido numa queda cuja morte teria sido “apressada” por um grupo de médicos em Poços de Caldas (MG). Enquanto aguarda o julgamento dos acusados pelo crime, o pai do menino, Paulo Pavesi, vive na Itália, onde afirma ter rebido asilo humanitário (veja documento).

Produto legítimo da globalização, como o Google ou a Al Qaeda, o tráfico de órgãos é uma indústria que usa os corpos de pessoas pobres e saudáveis de países como Índia, China, Moldávia e Brasil como peças de reposição para ricos doentes de Israel, EUA, Europa, Japão. “Em geral, a circulação dos rins segue as rotas estabelecidas do capital do Sul para o Norte, de corpos pobres para os ricos, de negros para brancos, de mulheres para homens ou de homens pobres para homens ricos”, descreve Nancy, um misto de antropóloga e detetive que percorreu as principais rotas do comércio de carne humana, do Bazar de Órgãos de Bombaim, na Índia, país campeão na exportação de órgãos, às vielas das comunidades pernambucanas.
Quem é quem no tráfico mundial de órgãos (clique para ampliar)

Apesar da sua magnitude, a conexão Durban-Recife pode ser apenas a rabeira de uma vasta série de negociatas de compra e venda de rins que estaria acontecendo nos últimos anos por conta da falta de fiscalização nos transplantes entre vivos, muitos dos quais ocultariam relações comerciais. Ao falar sobre o Brasil, Nancy elogia a qualidade do sistema de transplantes nacional, que considera “excelente e bem organizado”, mas aponta o risco de falhas.

— Há em diversos países doadores dizendo que são parentes para vender seus órgãos — afirma Nancy.

Especialistas suspeitam que a lei 9.434, de 1997, que disciplina os transplantes no Brasil, tenha provocado um boom no mercado negro de compra e venda de rins ao liberar a doação de órgãos entre pessoas sem qualquer parentesco.

— A lei brasileira é permissiva. Em vez de proteger, ela fragilizou os mais pobres — critica o médico Volnei Garrafa, coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília.

Em 2001, a pedido da ABTO, o Ministério da Saúde tentou impedir a comercialização de órgãos com a lei 10.211, que estabeleceu a necessidade de autorização judicial para a doação de órgãos entre não parentes. A medida, contudo, está longe de ser suficiente. Num estudo coordenado por Garrafa, publicado em 2003 na Revista da Associação Médica Brasileira, 80% dos entrevistados de um grupo que reunia promotores públicos, magistrados, médicos e pacientes concordou que a exigência de uma autorização judicial não bastaria para impedir que os doadores secretamente recebessem dinheiro para liberar uma parte de seus corpos.
"Quando o doador não é parente,
geralmente há dinheiro por trás"

Os transplantes entre vivos superaram os de doadores mortos a partir de 1996 e se mantiveram no topo desde então, contrariando o princípio médico que recomenda estimular justamente a doação de órgãos de cadáveres, que não obriga parte da população a viver com um rim a menos. Em 2002, o país realizou 3.042 transplantes de rins: destes, 60,8% ocorreram entre vivos, segundo dados da ABTO. Em 2008, os transplantes com doadores mortos deram um salto, passando a responder por 54% dos 3.780 transplantes renais. Nesse ano, dos 1747 transplantes inter vivos, 1429 (81,8%) ocorreram entre parentes; as demais doações incluíam não parentes, cônjuges e pessoas com parentesco não mencionado.

Para Garrafa, o aumento no número de doadores vivos tem mais a ver com uma possível corrida às compras de órgãos do que com uma súbita onda brilhante de generosidade deflagrada entre os brasileiros, dispostos a abrirem mão de um órgão pelos amigos:

— Na maioria dos países, o doador vivo só pode ser parente de primeiro grau: marido e mulher ou pais e filhos. Quando o doador não é parente, geralmente há dinheiro por trás.

A própria ABTO reconhece o problema:

— A gente tem informações que o Judiciário não faz questionamentos tão fortes como deveria fazer — diz Garcia.

Para “garantir rigor absoluto ao processo”, Garcia conta que a ABTO pediu ao Ministério da Saúde a inclusão de duas novas instâncias para liberar um transplante entre vivos não parentes: a comissão de ética do hospital e a Central Estadual de Transplante.

Nancy examina a cicatriz de uma das
vítimas do tráfico de órgãos em Pernambuco


Apesar das suspeitas, o número de casos investigados no Brasil é pequeno. Segundo dados da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Minstério Público Federal, há apenas 17 processos sobre tráfico de órgãos correndo atualmente na Justiça Federal — e destes, pelo menos oito dizem respeito à conexão Durban-Recife.

— Esperamos que seja um crime que aconteça raramente, e não que seja raramente descoberto — afirma Mario Luiz Bonsaglia, procurador regional da República da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul).

Para o procurador, a legislação brasileira precisa ser aprimorada para combater o tráfico de órgãos, pois a lei 9.434 não prevê a hipótese de tráfico internacional e estabelece “punições brandas” para o crime, que vão de três a oito anos de reclusão — podendo chegar a 12 anos, além de multa, se a vítima apresentar sequelas.As autoridades não tratam mais o tráfico de órgãos como fábula, mas o trabalho de apuração do crime ainda está no começo.

— A gente tem uma noção, mas não sabe a dimensão do tráfico de órgãos — admite o Secretário Nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior.

Na Secretaria, o combate ao comércio humano cabe ao Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que também investiga o tráfico de mulheres para a prostituição e o trabalho escravo. Atualmente, o núcleo está na fase de montar um banco de dados com informações da Justiça e das polícias.

— O tráfico de órgãos não é uma lenda urbana. É um problema real que tem feito muitas vítimas, mas no Brasil ainda temos pouco dados sobre esse tipo de crime — afirma o coordenador do Núcleo, Ricardo Lins.

Já a Polícia Federal evita falar sobre o tema.

PERFIL DE UM VENDEDOR (filipino)
>>> 29 anos >>> Homem >>> Renda familiar anual de US$ 480 >>> Sete anos de estudo
PERFIL DE UM COMPRADOR (israelense)
>>> 48 anos >>> Homem >>> Renda familiar anual de US$ 53 mil >>> Nível universitário

Um sintoma de como a apuração do tráfico de órgãos ainda está engatinhando é o fato de o próprio Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e outras instâncias reconhecerem a freira Maria Elilda Santos, criadora de uma ONG chamada Organ Traffic, como uma das principais referências do país no tema. Elilda ficou famosa em 2003, ao denunciar supostos casos de tráfico de órgãos na cidade de Nampula, em Moçambique, onde atuou como missionária. As denúncias da freira percorreram a imprensa mundial e foram mencionadas até no Parlamento Europeu, mas nunca foram comprovadas. A freira foi uma das estrelas da CPI do Tráfico de Órgãos e volta e meia dá as caras em jornais, programas de TV e revistas com declarações bombásticas sobre quanto o tráfico de seres humanos pagaria por um coração ou um cérebro.

A reportagem da Galileu passou quatro horas conversando com Elilda, em meio a pilhas de fotos de cadáveres mutilados e outros papéis. Foi como entrar num crossover entre Arquivo X e CSI. Para Elilda, há uma Máfia do Tráfico de Órgãos que mata pessoas para abastecer o mercado mundial de partes humanas e tem ramificações em praticamente todas as esferas possíveis. Essa Máfia já tentou matá-la mais de uma vez. A mesma Máfia levou o médico Drauzio Varella a apresentar uma série de TV sobre transplantes, destinada a fazer o público acreditar que a doação de órgãos é segura.

— Você é doador? — ela pergunta, e faz uma recomendação ao repórter: — Não deixe ninguém saber que você é doador, nem seus amigos. Se um dia você precisar usar o pronto-socorro de um hospital, podem matar você para ficar com seus órgãos.
Freira vê tráfico de órgãos em toda parte, até na morte de Eloá
Para Elilda, não há caso de crimes com cadáveres mutilados que não tenha relação com o tráfico de órgãos. Mesmo que tenham sido decapitações, como os casos que encontrou em Moçambique.

— A indústria médica precisa de cérebros para seus estudos — garante.

Até mesmo Eloá, a menina assassinada pelo namorado em Santo André, foi uma vítima da Máfia, que provocou sua morte encefálica no hospital para ficar com seus órgãos (a bala na cabeça era um detalhe). Aliás, morte encefálica não existe — é tudo uma invenção da Máfia.

A freira aparece no livro “A World Cut in Two: The Global Traffic in Organs” (Um Mundo Cortado em Dois: o Tráfico Global de Órgãos), que Nancy Scheper-Hughes pretende lançar no ano que vem pela University of California Press. As histórias de Elilda estão no primeiro capítulo, que trata dos boatos sobre roubo de órgãos. Ao narrar um encontro a freira, Nancy conta como ficou surpresa com a ausência de documentos confiáveis em meio à infinidade de papéis que ela carregava.

Que o diga o promotor público Roberto Tardelli, que investigou uma das denúncias apresentadas por Elilda, sobre um camelô que teria sido assassinado pela tal Máfia, interessada em ficar com seus órgãos. Quando a exumação do corpo comprovou que o cadáver estava intacto, Elilda acusou o promotor de fazer parte do esquema.

— É a lógica da teoria da conspiração — afirma o promotor.

Se chegar a ler esse post, Elilda terá certeza de que o Boteco Sujo é um dos braços da Máfia do Tráfico de Órgãos.

O que as teorias conspiratórias sobre o tráfico de órgãos parecem ignorar é a realidade de um mundo que concentra metade da riqueza mundial em 2% da população (segundo o Instituto Mundial de Pesquisa de Desenvolvimento Econômico, ligado à ONU) ao mesmo tempo em que expande as fronteiras do mercado, transformando todas as coisas em mercadorias.

Em Rim por Rim, Ludemir narra o diálogo entre um dos pernambucanos que vendeu seu rim, Gerehmias Berlamino Azevedo Júnior, e uma delegada. Geré se justifica dizendo que sacrificou um rim para salvar os filhos da miséria. E pergunta:

— Vamos dizer que a senhora tenha um filho e uma bala está vindo na direção dele. A única saída que a senhora tem para salvar a vida do seu filho é pular na frente daquela bala. A senhora pularia?

No mundo atual, ninguém precisa sequestrar pessoas para obter órgãos; a miséria já tem a força de mil armas.

Versão ampliada da reportagem publicada na revista Galileu deste mês

Fonte: Blog do Fausto Salvadori Filho

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