domingo, 23 de agosto de 2009

Um show de horrores em Israel

::

Israel: o horror-show do vice-primeiro-ministro*

por Uri Avnery, 22/8/2009


MEU PRIMEIRO pensamento foi: Santo Deus! Esse homem foi responsável pela vida dos soldados israelenses!

Meu segundo pensamento foi: Mas... por que tanta surpresa? Você sempre soube que tipo de homem é ele! Afinal, quando comandante-geral do exército israelense, ele sempre apoiou a instalação de postos de controle "ilegais" em toda a Cisjordânia!

E meu terceiro pensamento: Santo, santo Deus! Esse homem é hoje vice-primeiro-ministro e membro do "Sexteto" – é um dos seis ministros que governam Israel!

Esses aterrorizantes pensamentos ocorreram-me quando soube da participação de Moshe (“Bogie”) Ya’alon, em reunião da facção "Liderança Judaica"[1].

-- "Paz já"[2] é um vírus, disse o vice-primeiro-ministro. E não apenas os militantes do movimento "Paz já"; toda a mídia também "é um vírus". A mídia influencia o discurso público "de modo distorcido. A mídia mente e ensina a mentir".

O vírus inclui também "a elite" em geral. Além disso, todos "os políticos" também têm culpas:

-- "Sempre que os políticos aparecem com a pomba da paz, nós, o exército, temos de dar cabo dela.”

No resumo, pelo vice-primeiro-ministro de Israel:

-- "Os judeus têm o direito de colonizar toda a Grande Israel [orig. Eretz Israel]."

E, caso isso incomode os EUA, Ya’alon tem resposta na ponta da língua:

-- "Não tenho medo dos EUA!"

Tudo isso foi dito alguns dias depois de Ya’alon ter visitado – visita que a mídia noticiou fartamente – os Territórios Ocupados, acompanhado pelo líder do partido Shas, Eli Yishai, e vários outros ministros da extrema direita. O bando visitou os postos de controle nas colônias, que o governo israelense, há muito tempo, prometeu aos EUA desmontar; e em relação a cuja evacuação, o governo também se manifestou declaradamente contrário.

Concluíram a visita em Homesh, colônia na Cisjordânia evacuada por Ariel Sharon, quando do seu "desengajamento" [ing. “disengagement”]. Ya’alon exigiu a recolonização de Homesh.

Essa cantoria veio acompanhada de apavorante melodia, que todos já conhecemos bem. É o hino do fascismo.

Primeiro: a palavra "elite". No jargão da extrema direita israelense, "elite" são todos os que a direita odeia: os intelectuais, os acadêmicos, os políticos liberais, a Suprema Corte, a imprensa.

"Elite" é palavra derivada da raiz do verbo eligere do Latim, que siginifica selecionar, escolher os melhores, os seletos, os eleitos. Dado que esse corpo não tem definição fixa, a palavra "elite" aplica-se a diferentes alvos. Quando os demagogos falam das massas de judeus orientais, "elite" claramente significa os asquenazes que governam Israel. Quando falam da comunidade religiosa, "a elite" são os não-religiosos, os ateus, os indiferentes à Tradição Judaica. Quando falam dos migrantes russos, "a elite" são os israelenses nativos, que não querem que Israel receba novos imigrantes.

Se se juntam todos esses, surge um cenário em que há "eles" e "nós". "Eles" – um punhado de velhos arrogantes e antiquados, que ocupam todas as posições-chave no Estado; e "nós" – os bons, os honestos, os patriotas, os zeladores das tradições, os que sofrem discriminação, os oprimidos.

Todos os grupos fascistas, em todo o mundo, constroem, mantém e defendem esse tipo de visão do que seja "a elite".

(Nem faz diferença que Ya’alon, como a maioria dos demagogos como ele, também pertença a essa "elite". É israelense nativo, é asquenaze de ascendência ucraniana. Seu nome original é Smilansky. Ainda é oficialmente membro de um kibutz "de elite" e pertence ao corpo super-privilegiado dos oficiais superiores das Forças de Defesa de Israel, o exército israelense.)

Segundo: Os traidores. Há que temer o traidor interno. O inimigo interno é tão perigoso quanto o estrangeiro; de fato, é muito mais perigoso. Quando Ya’alon fala do movimento "Paz já", refere-se a todo o campo da paz, que reúne os setores liberais e seculares da sociedade israelense. O inimigo interno é a "5ª Coluna", o Cavalo de Troia enfiado além dos muros. Esse inimigo interno tem de ser eliminado antes, para que Israel possa combater o inimigo externo.

Terceiro: Os "políticos". Os demagogos também são políticos, é claro; mas eles se auto-excluem. Ya’alon pinta um quadro em que "políticos" são portadores de uma detestável "pomba da paz" cujos excrementos o exército tem de limpar.

Os imundos, manipuladores, covardes políticos, de um lado; de outro lado, o exército heroico, leal – é quadro muito familiar. O exemplo mais bem conhecido é a Alemanha depois da I Guerra Mundial. A lenda da "faca pelas costas" foi o primeiro degrau em que Adolf Hitler apoiou-se: o exército alemão enfrentara o inimigo e vencera; os "políticos", os judeus, os socialistas e outros "criminosos de novembro" queriam atingir os heroicos combatentes com uma facada pelas costas.

A pomba da paz defeca e os soldados são obrigados a limpar a imundície.

E também: "Toda a mídia". Essa é como uma das marcas registradas do fascismo em Israel e em todo o mundo. A mídia sempre é "esquerdista", antinacional, sempre é "a mídia hostil". Jornalistas da imprensa impressa, das rádios e das redes de televisão são uma espécie de odiadores profissionais, que vivem para espalhar o ódio, para abater a moral da nação, para difamar o exército, para conspurcar os valores israelenses nacionais e facilitar a vida do inimigo.

A realidade, é claro, é muito, muito diferente. A imprensa israelense vive de repetir covardemente a propaganda oficial em todos os temas que tenham a ver com Israel e a segurança de Israel. A imprensa israelense é conformista e está mobilizada, de muro a muro. Não há nem um só, que fosse, jornal de esquerda em Israel.

A maioria dos correspondentes e colunistas de política repetem como papagaios as declarações de "fontes oficiais"; todos os comentaristas que tratam de questões árabes são ex-agentes dos serviços de inteligência do exército; e praticamente todos os especialistas em questões militares trabalham como porta-vozes não-oficiais do exército. Nos noticiários, o jargão da extrema direita reina soberano. Mas, porque em assuntos menos importantes vez ou outra a imprensa critica o governo – porque a imprensa israelense, mesmo que só formalmente, ainda tem algum compromisso com a sociedade democrática –, é fácil pintar a imprensa como "esquerdista" e subversiva. O mesmo vale para a academia.

E, por fim: O "vírus". Descrever adversários políticos como agentes infecciosos ou animais nojentos é dos traços mais frequentes da extrema direita. Basta lembrar o filme "O eterno judeu", do Dr. Joseph Goebbels, no qual os judeus são mostrados como ratos que disseminam doenças.

Ponham-se juntos todos esses traços – o ódio contra as elites, a glorificação do exército, o desprezo pela política, a demonização dos que trabalham pela paz, o ódio contra a imprensa – e emerge aí a horrenda cara do fascismo. Em Israel, como em todo o mundo.

IGUALMENTE IMPORTANTE foi o local escolhido para o 'pronunciamento' do vice-primeiro-ministro.

Ya’alon falou numa reunião da "Liderança Judaica". É grupo de ultra-direita, que se alistou no partido Likud com o declarado objetivo de conquistar o partido "por dentro"; o chefe é um Moshe Feiglin, motivo pelo qual seus seguidores são designados em geral como "os Feiglins”.

Na vésperas das últimas eleições, Binyamin Netanyahu fez esforço hercúleo, usando meios kosher e não-muito-kosher, para excluir Feiglin da lista de candidatos do Likud. Estava decidido a evitar que o partido Likud fosse apresentado como partido de extrema-direita. O partido Kadima, principal adversário direto do Likud, apresentou-se como partido de centro ou da direita moderada e tentava apresentar Netanyahu como direitista; e Netanyahu imaginava que, excluindo os Feiglins, conseguiria resistir aos empurrões do Likud.

A questão é saber se esse seria o único objetivo de Netanyahu. Se fosse, por que Netanyahu transferiu Benny Begin, homem que personifica a ultra-ultra-direita, para lugar de destaque, na mesma lista? E por que alistou e abraçou Moshe Ya’alon, conhecido por suas ideias de extrema-direita? Esse abraço custou caro, porque, no final das contas, o partido Kadima, ao contrário de todas as expectativas, só conseguiu ganhar uma cadeira (e um voto) a mais, em relação ao partido Likud.

Não. Netanyahu, político nato, tinha em vista outros objetivos. De fato, ele temia que Feiglin viesse a ameaçar sua liderança dentro do partido Likud. Para prevenir, negou a Feiglin um assento no Parlamento.

E agora aí está Ya’alon, protégé de Netanyahu, aliado a Feiglin! Como diz o ditado judeu, a andorinha não deve visitar o corvo! Só falta saber com certeza quem é a andorinha e quem é o corvo. Feiglin está usando Ya’alon? Ou Ya’alon tenta usar Feiglin para posicionar-se, o próprio Ya'alon, como líder de um grande campo de extrema direita?

É PRECISO prestar atençao ao que Ya'alon declarou: "Não tenho medo dos EUA." Os norte-americanos exigem o fim da construção de colônias? Que se danem os norte-americanos! Quem pensam que são? Por que esses não-judeus metem-se a dar ordens aos judeus? Barack Obama quer nos dizer aos judeus onde podemos colonizar e onde não podemos colonizar? Quem é Barack Obama?

Esse é outro traço do emergente fascismo israelense: a rapidez com que tantos se declaram abertamente contra os EUA e, sobretudo, contra o presidente Obama. Já está ativa em Israel uma campanha contra "Barack Saddam Hussein", o Novo Hitler. A direita norte-americana e a direita israelense sempre encontram linguagem comum. Uma israelense comanda, nos EUA, campanha forte para provar que Obama não nasceu nos EUA, que seu pai jamais foi cidadão norte-americano e que Obama, portanto, deve ser despejado da Casa Branca.

A coisa beira a mais completa loucura. Israel é quase totalmente dependente dos EUA para praticamente tudo: auxílio econômico, armas, cooperação nos serviços de inteligência, apoio diplomático para resistir aos veto no Conselho de Segurança da ONU. Netanyahu tem tentado evitar qualquer confronto e tem usado todos os truques que conhece para enganar o maior número possível de norte-americanos pelo maior tempo possível. E então... aparecem Ya’alon & Co., desafiam os EUA e pregam abertamente a rebelião!

Há método nessa loucura. O sistema israelense de educação glorifica os zelotes, os quais, há 1940 anos, declararam guerra ao Império Romano. Os zelotes tornaram-se líderes da comunidade judaica na Palestina e lideraram uma revolta sem qualquer esperança (ou possibilidade) de vitória. Os rebeldes foram derrotados; Jerusalém, destruída; e o Templo foi queimado e reduzido a cinzas. Assim se geram eternas vítimas.

O HORROR-SHOW DO VICE-MINISTRO tem ainda outras ramificações.

Há quem diga que o vice-primeiro-ministro lideraria um bando de extremistas doidos, desafiando um Netanyahu responsável e moderado. É quando Netanyahu pode sinalizar na direção de Obama e dos norte-americanos: Help! Se vocês me pressionarem demais para congelar a construção de colônias e para desmontar os postos de controle... não conseguirei resistir! Será o fim do meu governo e, aí, vocês que se entendam com aqueles malucos!

Muito mais convincente seria a encenação, se Netanyahu usasse suas prerrogativas e afastasse Ya’alon do governo – embora aí também haja um risco político a enfrentar. Não. Em vez de demiti-lo, "Bibi" obedece "Bogie" como no jogo de "seu-chefe-mandou". "Bogie" mandou "Bibi" escrever (e Bibi já estivesse escrevendo) cem vezes: "Hei de me comportar melhor".

E assim acontece que Ya’alon continua a ser vice-primeiro-ministro, ministro encarregado das Questões Estratégicas e membro do "Sexteto" de ministros governantes em Israel (os demais são Avigdor Lieberman, Benny Begin, Eli Yishai, Dan Meridor e o próprio Binyamin Netanyahu.)

É claro que, nessas circunstâncias, Netanyahu é integralmente responsável por tudo que Ya’alon faz e diz.

* URI AVNERY, 22/8/2009, "The Bogie Horror Show", em Gush Shalom [Grupo da Paz], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1250978291/

[1] Orig. Jewish Leadership. Sobre o movimento, ver http://www.jewishisrael.org/

[2] Orig. Peace Now. Sobre o movimento "Paz já", de israelenses que lutam a favor da autodeterminação dos palestinos, nas fronteiras de 1967, ver http://www.peacenow.org.il/Site/en/homepage.asp.

Fonte: Vi o Mundo

Leia também: Israel e o trabalho dos migrantes - A estratégia oculta de Israel para o trabalho dos migrantes.

::


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: