quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O vício repressivo

por Guilherme Scalzilli

Publicado no jornal Correio Popular, em 6 de agosto de 2009.


A oposição maniqueísta e simplificadora entre fumantes e não-fumantes indistintos alimenta a falaciosa batalha entre o lado “puro” da sociedade e uma entidade malévola homogênea. As palavras de ordem, o espírito salvacionista e o patrulhamento disfarçado pelo discurso edificante reproduzem as características de uma cruzada religiosa contra os infiéis da fumaça.
Repetindo as internações “saneadoras” dos leprosos no início do século passado, os fumantes serão afastados do convívio público, impedidos de usufruir as benesses da cidadania, tratados como párias contagiosos. Doentes, compulsivos, incapazes de discernir limites ou de raciocinar, devem ser expulsos às sarjetas e humilhados até que purguem seus pecados. Tudo em nome do bem coletivo.

Sim, o cigarro é uma droga estúpida, alienante e fatal. Mas admitamos de uma vez por todas: o governo paulista não está preocupado com a saúde dos não-fumantes. Para preservá-los, bastaria permitir os chamados fumódromos, adotados com sucesso nas mais tradicionais democracias do planeta (os proibicionistas mentem a esse respeito). Há inúmeras outras medidas possíveis, mas todas levariam em conta a escolha individual, e tamanha liberdade não pode ser tolerada pelos repressores de plantão.

O veto aos fumódromos e o repúdio intransigente ao “cigarro eletrônico” (pretensamente inofensivo a terceiros) revelam a sanha de impedir a fruição pública e impune de um gesto estigmatizado. Ninguém pode contrariar a ditadura das aparências, profanando o deus maior da longevidade com a coreografia da autodestruição insolente. Fumar sem culpas exibe uma irresponsabilidade insuportável para os mártires da salubridade absoluta, talvez por desmascarar sua fantasia publicitária.

Alguns dos maiores inimigos da ingerência estatal toleram sua manifestação mais agressiva e totalitária – aquela que interfere nas decisões do indivíduo sobre o próprio corpo. Mas a contradição é apenas aparente. Ultrapassados os limites do foro privado, o poder discricionário das autoridades não encontrará qualquer obstáculo.

Caberá ao Judiciário explicar o aval concedido a uma legislação que viola o preceito constitucional da hierarquia normativa e criminaliza substância legalizada. À população resta o tratamento habitualmente conferido às medidas tolas e autoritárias: o teatro da submissão inicial, a distensão gradativa e um duradouro esquecimento.

Fonte: Blog Guilherme Scalzilli

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