quinta-feira, 19 de março de 2009

"Furor populista" nos Estados Unidos

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por Luiz Carlos Azenha

Vamos supor que você, caro leitor, tenha se quebrado apostando no mercado financeiro. O que você faz? Bem, se você tem "conexões" na política, mexe os pauzinhos para que um BNDES da vida venha tapar, com dinheiro público, o seu prejuízo. É a famosa socialização dos prejuízos. Eu, que não tenho nada a ver com isso, acabo pagando -- via impostos -- pelas perdas alheias. Ainda não se escreveu uma crônica completa das manobras de bastidor que aconteceram no Brasil desde que a crise financeira se agravou. Espero que um dia essa história seja contada, mas duvido que vá sair nos jornais ou nas revistas: os beneficiários em geral são grandes patrocinadores.

Nos Estados Unidos a coisa está ficando feia para o presidente Barack Obama. Existe um clima de revolta generalizado contra os pacotes de ajuda financeira aos bancos. Americano eu conheço bem. Você pode enrolá-lo com qualquer conversa mole -- menos quando se trata de dinheiro. E a revolta contra Obama tem relação com dinheiro: o presidente deu continuidade aos planos do governo Bush para "resgatar" as empresas de Wall Street. Ele poderia ter estatizado os bancos. Alguns iriam à falência. Outros receberiam dinheiro público e, mais tarde, seriam privatizados novamente. Isso exigiria, no entanto, que os acionistas perdessem muito dinheiro.

Em vez disso, o que Obama está fazendo? Injeta bilhões de dólares diretamente nos bancos falidos e, para acalmar a plebe, distribui outros bilhões direta ou indiretamente aos consumidores. A idéia é incentivar as pessoas a gastar e, assim, fazer com que elas cumpram as obrigações assumidas com... os bancos. Ou seja, além de receber uma injeção de dinheiro público no caixa os bancos recebem dinheiro público através de seus clientes. E, a médio prazo, podem recuperar praticamente tudo o que perderam. Mas e esse dinheiro público, de onde sai? Do contribuinte americano, é lógico. Trata-se, assim, de uma imensa transferência de renda do contribuinte americano para os acionistas das empresas que correm risco de quebrar em Wall Street.

É óbvio que ninguém advoga uma quebradeira generalizada. Mas nos Estados Unidos há quem acredite que seja necessário punir aqueles que especularam. Como? Onde dói, no bolso. Dizem que isso é "populismo", mas sempre há gente dedicada a oferecer justificativas intelectuais para o assalto ao dinheiro alheio.

Aqui no Brasil a atuação pouco transparente dos agentes econômicos públicos e a falta de "curiosidade" dos jornalistas faz com que a gente não saiba o que se passa nos bastidores. Mas nos Estados Unidos a "socialização" dos prejuízos está causando furor, especialmente pelo fato de que foi dinheiro público que permitiu à seguradora AIG que cumprisse seus compromissos no mercado.

Fiquem com o que o ex-governador de Nova York, Eliot Spitzer, escreveu sobre o assunto na revista eletrônica Slate:

O verdadeiro escândalo da AIG não são os bônus. É que as contrapartes da AIG estão recebendo tudo o que tinham a receber

Todo mundo corre para condenar os bônus pagos aos executivos da AIG, mas este simples escândalo obscurece a verdadeira desgraça na seguradora gigante: por que as contrapartes da AIG estão recebendo tudo o que tinham a receber, na casa dos bilhões de dólares do dinheiro dos contribuintes?

Para a resposta a essa pergunta temos de voltar à decisão inicial de salvar a AIG, feita, somos informados, pelo então secretário do Tesouro Henry Paulson, pelo então chefe do Banco Central em Nova York, Timothy Geithner, pelo presidente da Goldman Sachs Lloyd Blankfein e pelo presidente do Banco Central, Ben Bernanke, no outono passado.

Depois da falência da Lehman [Brothers, o banco de investimento], eles temiam que um colapso sistêmico poderia resultar da incapacidade da AIG de pagar a contrapartida de todos os sofisticados instrumentos financeiros que ela havia vendido aos clientes. E quem eram os parceiros de negócio da AIG? Nenhum choque aqui: Goldman, Bank of America, Merrill Lynch, UBS, JPMorgan Chase, Morgan Stanley, Deutsche Bank, Barclays e assim vai. Agora sabemos com certeza o que apenas suspeitávamos: o resgate da AIG foi uma forma de esconder uma segunda e enorme entrega de dinheiro para o mesmo grupo que já havia recebido dinheiro do TARP [o plano de resgate federal, aprovado ainda no governo Bush].

Parece, mais uma vez, que os mesmos insiders estão se protegendo contra a divisão da dor e do risco de sua própria aventura. Os pagamentos às contrapartes da AIG são justificados com um apelo à "santidade dos contratos". Se os contratos da AIG não valerem, diz a teoria, então todo o edifício do sistema financeiro vai desabar.

Mas esperam um momento, não estamos no meio de reabrir contratos em toda a parte para dividir o peso da crise? De aumentar os impostos -- do imposto de renda aos impostos estaduais -- à reabertura dos contratos de trabalho, estamos todos recebendo um pedido para carregar nossa parte do peso.

Trabalhadores de todo o país estão recebendo pedidos para aceitar cortes de salários e trabalhar menos horas por semana para que colegas não sejam demitidos. Por que a realeza de Wall Street não deveria carregar um pouco do peso? Por que a Goldman tem de receber 100 centavos por dólar? Já não demos à Goldman uma infusão de 25 bilhões em capital e eles não estão sentados sobre 100 bilhões em dinheiro vivo? Não fomos informados recentemente de que eles estão voltando a ter estabilidade fiscal? Se é verdade, eles não poderiam ter aceitado um desconto? Não poderiam ter concordado com certas condições antes de que os dólares da AIG -- ou seja, nossos dólares -- escoassem?

A aparência de que se trata de um acerto de bastidores é clara. A AIG não foi mais do que um conduto para o fluxo de capitais para os mesmos suspeitos de sempre, sem razão ou explicação. Aqui estão várias perguntas que deveriam ser respondidas em público, sob juramento, para esclarecer:

Qual foi precisamente a conversa entre Bernanke, Geithner, Paulson e Blankfein que precedeu o empréstimo inicial de 80 bilhões [à AIG]?

Já se sabia quais eram as contrapartes e qual era a exposição de cada uma das contrapartes?

O que a Goldman e todas as outras contrapartes sabiam sobre a condição financeira da AIG quando fecharam os contratos? Eles foram diligentes para determinar se estavam realmente comprando proteção? Por que eles não deveriam arcar com uma parte do risco de fracasso da contraparte [AIG]?

Qual é o relacionamento entre a Goldman e a AIG? Elas não tentaram se fundir alguns anos atrás mas a Goldman não aceitou por não conseguir entrar na caixa-preta da AIG? Se é verdade, por que a Goldman desistiu do negócio? Afinal, eles não deveriam saber, tanto quanto qualquer outra pessoa, que uma grande parte do modelo de negócios da AIG estava baseado no não-pagamento das apólices que emitia?

Por que o nome das contrapartes não foi imediatamente divulgado?

O fracasso na resposta a essas questões vai alimentar o ódio populista que está se espalhando muito rapidamente. E vai levantar questões sobre a competência daqueles que supostamente estão guiando nossa política econômica.

Fonte: Vi o Mundo

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