segunda-feira, 23 de março de 2009

A crise e o papel de cada um

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O discurso agressivo e otimista estava correto. Não otimista por um complexo de Poliana, mas porque a reação era (e ainda é, apesar dos riscos terem crescido exponencialmente) possível. Mas é preciso que cada um faça o seu papel, e o do governo é dar seguimento à sua retórica com políticas precisas e vigorosas. O discurso do presidente, a esta altura, não deveria estar dirigido a manter o moral do público, mas, sim, de seu próprio ministério.

No último trimestre de 2008 foram sepultadas as esperanças de que a crise internacional passasse pela economia brasileira como uma ventania forte observada de dentro de casa. Tremessem os vidros, houvesse um barulho assustador, voassem mesmo algumas telhas, mas, no geral, apenas um susto. Ainda não é totalmente claro se, ao final, sofreremos mais susto do que danos extensivos. Nunca foi tão preciso o clichê de que o futuro é incerto. De qualquer forma, se tudo acabar se resumindo para nós numa forte ventania, no mínimo já sabemos que deixamos algumas janelas abertas e alguns quadros na parede já saíram voando e algumas porcelanas já se partiram. O vento ainda é forte e temos que tentar fechar as janelas para evitar danos maiores.

Como já é conhecimento de todos, a crise americana não nos atingiu de forma tão dura como ocorreu com outros países, porque o sistema financeiro brasileiro está ha anos pendurado na dívida pública doméstica e não viu necessidade de se envolver em esquemas mirabolantes como os financiamento de hipotecas subprime para ganhar muito dinheiro.

Americanos e ingleses gostam muito de um conceito chamado de serendipity, isto é, um resultado feliz mas totalmente inesperado de uma decisão voltada para objetivos completamente diferentes. Serendipity foi o que tivemos com o banco central que o bom deus (ou o demônio) nos deu: a política de juros altos e o real sobrevalorizado promovida por anos pela autoridade monetária fez com que os bancos brasileiros não se interessassem pelas miragens do mercado financeiro internacional e agora não sofrêssemos o impacto da crise que atinge não apenas os americanos, mas também europeus, asiáticos, etc.

Mas é impossível que uma economia que representa de um quarto a um quinto da economia mundial sofra uma crise grave como essa, que ameaça mesmo tornar-se uma depressão (até pela sua duração: estamos entrando no terceiro ano desde o início da crise, no primeiro semestre de 2007), sem que todos sejamos de alguma forma atingidos.

Já não importa muito recapitular como isso aconteceu, no segundo semestre do ano passado, culminando na queda espetacular do Produto Interno Bruto do último trimestre de 2008. O cenário mudou, de setembro para a frente, e a situação, até então relativamente benigna, tornou-se muito mais dramaticamente perigosa, exigindo a definição de políticas de governo muito melhor definidas do que se teve até o momento.

A economia brasileira se beneficia de vantagens em uma crise das dimensões atuais que poucas economias têm. Sua dimensão continental, sua base de recursos naturais, a existência de um parque produtivo razoavelmente diversificado e integrado e, não menos importante, a existência de instituições públicas capazes de implementar estratégias mais agressivas de política econômica permitem definir caminhos alternativos de enfrentamento da crise que não representem a aceitação passiva e fatalista de impulsos vindos do exterior. Em outras palavras, o Brasil pode procurar no seu mercado doméstico as fontes de sustentação da demanda necessária para que as firmas locais continuem produzindo e garantindo o emprego da população, minimizando os efeitos negativos da contração internacional.

Muito se ridicularizou o Presidente no ano passado quando apontou repetidamente em seus discursos que era preciso manter a economia funcionando, consumidores e empresas deveriam manter um comportamento tão próximo da normalidade quanto possível, impedindo que a economia se paralisasse pelo simples temor de contágio da crise externa. Lula, na verdade, não estava argumentando de forma muito diferente de Franklin Roosevelt quando, no fundo do poço da depressão americana, declarou que a única coisa que os americanos tinham a temer era o próprio medo.

Na verdade, os americanos tinham muito a temer, como nós também, mas Roosevelt tinha razão em argumentar que o medo é em si mesmo paralisante, que substitui o impulso à resistência, ao combate, pela imobilidade conformista. E Lula também estava, em grande medida, certo.

Em grande medida, porque, como veremos, a retórica agressiva deve ser o preâmbulo da reação vigorosa. Ela não basta em si mesma. O discurso deve preparar para a reação, o ataque aos problemas, e esse não se deu como deveria, pelo menos até agora. A reação negativa que a retórica otimista enfrentou se explica, certamente, em parte pelas contingências políticas (não seria de se esperar que a oposição ao governo se comportasse de outro modo), em parte pelo enorme e raivoso preconceito que muitos alimentam contra Lula, mesmo quase sete anos depois de sua posse (quantos desses críticos recriminaram FHC ou Malan por ter evidentemente mentido à população quando afirmavam, ao final de 1998, repetidamente que o real, e a economia brasileira, estavam seguros?).

Mas a retórica só pode ir até certo ponto. Ela deve servir para manter o moral das tropas enquanto as ordens de serviço são definidas. E aí as coisas não saíram até agora como deveriam.

O público, na verdade, respondeu ao chamado do Presidente e fez o seu papel. Empresas mantiveram a produção e o emprego em expansão, e consumidores continuaram demandando bens e serviços até os últimos três meses de 2008, quando as expectativas se deterioraram dramaticamente. Mas o governo falhou nas duas frentes que lhe cabiam. A política fiscal foi dúbia e a política monetária francamente negativa.

A política fiscal foi dúbia porque a retórica do governo em torno da definição de uma estratégia expansiva, definida em torno do PAC, não se transformou em medidas efetivas na escala necessária. Em primeiro lugar, porque o momento exigiria investimentos públicos em maior escala que os definidos pelo PAC. O PAC foi definido para ser suportado por uma economia funcionando em condições normais. Por definição, isto seria pouco para compensar tendências emergentes à contração. Segundo, porque mesmo os investimentos do PAC, aparentemente, continuaram a ser implementados com uma certa placidez burocrática completamente descabida quando a economia pede a ação decidida e vigorosa do governo.

Finalmente, a política fiscal do governo federal oscila entre a postura mais agressiva do presidente e atitude hesitante e incerta de seus auxiliares, que parecem se debater na dúvida hamletiana entre uma política expansiva de gastos e a obediência aos preceitos da chamada prudência fiscal que parece extravasar da burocracia do ministério do Planejamento e contaminar os policy-makers do ministério da Fazenda.

Sobre a política monetária não há muito o que dizer de novo. A diretoria do Banco Central não se mostrou à altura das demandas da economia brasileira e ninguém se surpreendeu com isto, que afinal vem de longe. Surpreendente seria se agissem diferentemente. Com sua lentidão paquidérmica, o Banco Central age como aquele convidado encarregado de trazer a cerveja para a festa e chega quando todos já foram embora.

O discurso agressivo e otimista estava correto. Não otimista por um complexo de Poliana, mas porque a reação era (e ainda é, apesar dos riscos terem crescido exponencialmente) possível. Mas é preciso que cada um faça o seu papel, e o do governo é dar seguimento à sua retórica com políticas precisas e vigorosas. O discurso do presidente, a esta altura, não deveria estar dirigido a manter o moral do público, mas, sim, de seu próprio ministério.

*Fernando Cardim é economista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Fonte: Agência Carta Maior

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