terça-feira, 14 de outubro de 2008

O fim de uma era do capitalismo financeiro

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A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. E essa crise ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.

Os terremotos que sacudiram as bolsas no “setembro negro” que passou precipitaram o fim de uma era do capitalismo. A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. O Estado retorna.

O desmoronamento de Wall Street é comparável, no âmbito financeiro, ao que representou, no geopolítico, a queda do muro de Berlim. Uma mudança de mundo e um giro copernicano. Quem o afirma é o Nobel de Economia, Paul Samuelson: “Esta débâcle é para o capitalismo o que a queda da URSS foi para o comunismo”. Termina o período aberto em 1981 com a fórmula de Ronald Reagan: “O estado não é a solução, é o problema.” Durante trinta anos, os fundamentalistas do mecado repitiram que este tinha razão, que a globalização era sinônimo de felicidade, e que o capitalismo financeiro edificava o paraíso terreno para todos. Equivocaram-se.

A “idade de ouro” de Wall Street acabou. E também acabou um período de exuberância e esbanjamento representada por uma aristocracia de banqueiros de investimento, “amos do universo” denunciados por Tom Wolfe em “A Fogueira das Vaidades” (1987). Possuídos pela lógica da rentabilidade de curto prazo. Pela busca dos lucros exorbitantes.

Dispostos a tudo para obter mais lucros: vendas abusivas no curto prazo, manipulações, invenção de instrumentos opacos, titulação de ativos, contratos de cobertura de riscos, fundos Hedge. A febre do proveito fácil contagiou a todo o planeta. Os mercados se sobreaqueceram, alimentados pelo excesso de de financeirização que facilitou a alta dos preços.

A globalização conduziu a economia mundial a tomar a forma de uma economia de papel, virtual, imaterial. A esfera financeira chegou a representar mais de 250 trilhões de euros, ou seja, seis vezes o montante de riqueza real mundial. E, de chofre, essa gigantesca “bolha” explodiu. O desastre é de proporções apocalípticas. Mais de 200 bilhões de euros derreteram. A banca de investimento foi varrida do mapa. As cinco maiores entidades desmoronaram: Lehman Brothers na bancarrota; Bear Stears foi comprado com a ajuda do Federal Reserve, por Morgan Chase; Merril Lynch foi adquirido pelo Bank of America; e dois dos últimos, Goldman Sachs e Morgan Stanley (em parte comprado pelo japonês Mitsubishi UFJ), reconvertidos em bancos comerciais.

Toda a cadeia de funcionamento do aparato financeiro colapsou. Não só a banca de investimento, mas os bancos centrais, os sistemas de regulação, os bancos comerciais, as caixas econômicas, as companhias de seguros, as agências de qualificação de risco (Standard&Poors, Moody's, Fitch) e até as auditorias contábeis (Deloitte, Ernst&Young, PwC).

O naufrágio não pode surpreender a ninguém. O escândalo das “hipotecas lixo” era conhecido de todos. Assim como o excesso de liquidez orientado para a especulação, e a explosão delirante dos preços do custo de vida. Tudos isso foi denunciado – nestas colunas – há tempo. Sem que ninguém se mexesse. Porque o crime beneficiava a muitos. E se seguiu afirmando que a empresa privada e o mercado solucionavam tudo.

A administração do presidente George W. Bush teve de renegar esse princípio e recorrer, maciçamente, à intervenção do Estado. As principais entidades de crédito imobiliário, Fannie Mae y Freddy Mac, foram nacionalizadas. Também o foi o American International Group (AIG), a maior companhia de seguros do mundo. E o secretário do tesouro, Henry Paulson (ex-presidente do banco Goldman Sachs) propôs um plano de resgate de ações “tóxicas” procedentes das “hipotecas lixo” (subprime) por um valor de uns 500 bilhões de euros, que o Estado também adiantará, quer dizer, os contribuintes.

Prova do fracasso do sistema, essas intervenções do Estado – as maiores, em volume, da história econômica – demonstram que os mercados não são capazes de se regularem por si mesmos. Se autodestruíram por sua própria voracidade. Ademais, confirma-se uma lei do cinismo neoliberal: privatizaram os lucros mas se socializaram as perdas. Os pobres têm de arcar com as excentricidades irracionais dos banqueiros, e se lhes ameaça, em caso de não quererem pagar, com o seu maior empobrecimento.

As autoridades norte-americanas dedicam-se ao resgate dos “banksters” (“banqueiro gângster”), às expensas dos cidadãos. Há algums meses o presidente Bush se negou a assinar uma lei que oferecia uma cobertura médica a nove milhões de crianças pobres por um custo de 4 bilhões de euros. Considerou um gasto inútil. Agora, para salvar aos rufiões de Wall Street, nada lhe parece suficiente. Socialismo para os ricos e capitalismo selvagem para os pobres.

Este desastre ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.

Quanto durará a crise? “Vinte anos se tivermos sorte, ou menos de dez se as autoridades agirem com mão firme”, vaticina o editorialista neoliberal Martin Wolf (1). Se houvesse alguma lógica política, este contexto deveria favorecer a eleição do democrata Barack Obama (em não sendo assassinado) para a presidência dos Estados Unidos no 4 de novembro próximo. É provável que, como D. Roosevelt, em 1930, o jovem presidente lance um novo “New Deal”, baseado no neokeynesianismo que confirmará o retorno do Estado à esfera econômica. E que trará, por fim, mais justiça social aos cidadãos. Vai se caminhar para um novo Bretton Woods. A etapa mais selvagem e irracional da globalização terá terminado.

(1) Financial Times, Londres, 23 de setembro de 2008

Tradução: Katarina Peixoto

*Ignacio Ramonet é jornalista.

Fonte: Agência Carta Maior

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