terça-feira, 14 de outubro de 2008

O CASO BRITÂNICO - "A direção da globalização vai mudar"

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As medidas nacionalizantes de ações e bancos anunciadas pelo primeiro ministro Gordon Brown, do Partido Trabalhista, tiveram um poder eletrizante em relação aos demais governantes dos países diretamente envolvidos com as causas da crise, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Para "The Economist", medidas equivalem a aplicação de uma lei marcial nas instituições financeiras.

Talvez por ser o país de Margareth Thatcher, as medidas do governo britânico para intervir no mercado financeiro e nacionalizar parte das ações de três de seus grandes bancos neste fim de semana tiveram uma repercussão simbólica para além dos efeitos econômicos.

Na Europa, ao final do século XX, nenhuma pessoa foi tão elogiada e tão odiada, pelas mesmas razões, como Margareth Thatcher, vanguarda, campeã e símbolo do neo-liberalismo baseado nas idéias de Friedrich von Hayek e outros teóricos da Escola Austríaca de Economia ou de seus descendentes, como Milton Friedman.

Tatcher foi a elogiada defensora do livre mercado, da desregulamentação das leis trabalhistas, da destruição do poder de barganha coletiva e individual dos trabalhadores, da destruição das bases do estado de bem estar social; ela foi a bomba nêutron dos sistemas educacionais, da previdência e de saúde públicos, a virtuose das privatizações, a primeira dama do anti-comunismo, do anti-socialismo, da anti-social-democracia; last but not the least, ela foi a amiga e protetora do General Pinochet, o sucessor de Francisco Franco na Ordem Excelsa dos Ditadores Universais.

A Grã-Bretanha de Thatcher foi, com os Estados Unidos de Ronald Reagan e o Vaticano de João Paulo II, uma das pontas de lança que ao mesmo tempo ajudaram a provocar e colheram a derrocada do mundo comunista a partir de 1989 (embora por essa época seu poder estivesse chegando a seu Waterloo). Mas não só isso: por tabela, provocou também a situação política em que todos os partidos social-democratas e socialistas da Europa Ocidental naufragaram à direita, tornando-se eles também campeões das reformas neoliberais do Estado, com maior ou menor alcance conforme seus países de origem e atuação.

Por esse tempo a London School of Ecomics, instituição herdeira do socialismo utópico por ocasião de sua fundação em 1895, mas que passara por reformas liberalizantes, lançou as bases da discussão que levaria ao fim e ao cabo à formulação da “Terceira Via” do Trabalhismo britânico, uma espécie de neo-liberalismo mitigado com tinturas sociais, que catapultou Tony Blair ao poder, mas não mexeu nos fundamentos da reforma promovida por Tatcher.

Por isso mesmo as medidas nacionalizantes de ações e bancos anunciadas pelo primeiro ministro Gordon Brown, do mesmo Labour Party de Blair, tiveram um poder eletrizante em relação aos demais governantes dos países diretamente envolvidos com as causas da crise, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia.

As medidas, elogiadas de imediato pelo novo ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, conhecido crítico das políticas econômicas e externa de Bush, foram profundas e cortantes, equivalendo, em alguns aspectos, a aplicação de uma lei marcial nas instituições.

Para prepará-las e implementá-las, Brown reuniu alguns pesos-pesados da economia e da administração pública britânicas: Tom Scholar, Paul Mynes, Lord Adair Turner e John Kingsman, todos já experimentados negociadores com instituições financeiras, algumas insolventes, no passado.

As medidas envolveram 3 dos maiores bancos britânicos: o Royal Bank of Scotland, o HBOS e o Lloyds TSB, os dois últimos em fusão provocada pela compra do primeiro pelo segundo, com apoio do governo. O pacote de intervenção, que pode chegar à ordem de 500 bilhões de libras (650 bilhões de euros ou 1,95 trilhões de reais), dependendo de seus desdobramentos, significa que o Estado está assumindo o controle de 60% das ações do RBS, e de 43,5% do capital dos outros dois. Além disso, o pacote trouxe medidas de “saneamento interno”: troca de diretores em postos-chave; suspensão do pagamento de bônus a diretores e conselheiros em 2008, que poderiam chegar a 1 milhão de libras por pessoa; pagamento de bônus em 2009 sob a forma de ações ao invés de em dinheiro; reavaliação das indenizações devidas aos diretores afastados.

As reações às medidas foram imediatas e contundentes, em todos os quadrantes. Os “tories” do Partido Conservador tiveram de admitir, a contragosto, sua necessidade (Financial Times, 14/10), assim mesmo advertindo sobre o perigo de serem demasiadas. Para que fossem deglutidas de modo mais fácil, lembraram (e o próprio Brown também lembrou) que reavivar a confiança no sistema britânico era necessário para colocar Londres e sua bolsa em posição de liderança mundial, diante de Nova Iorque e outras congêneres rivais. Não deixa de haver muita razão neste argumento: a crise, mundial em seus efeitos, renovou vagos ou explícitos sentimentos nacionalistas num mercado dito completamente globalizado até pouco tempo atrás.

De fato, as medidas britânicas colocaram os Estados Unidos “na berlinda”: esperam-se medidas semelhantes, além do pacote de 700 bilhões de dólares de intervenção no mercado, a partir de Washington e Nova Iorque nas próximas horas, ou nos próximos dias. Reuniram-se diretores do Goldman Sachs, do Bank of América, do Morgan Stanley e do JP Morgan com membros do governo, e especula-se sobre novos aportes que podem chegar aos 250 bilhões de dólares.

A decisão britânica também ressoou na vizinha Europa, onde depois de uma reunião no domingo à noite, em Paris, França, Alemanha, Áustria e Espanha anunciaram um pacote de apoio ao sistema bancário que beira o trilhão de euros. Medidas semelhantes devem vir nos próximos momentos da Itália, da Suécia, da Polônia e da Noruega, talvez de outros países.

Ainda na frente interna britânica, o Office of Fair Trade, órgão fiscalizador do sistema bancário, manifestou preocupação pela restrição à concorrência que pode significar a compra do HBOS e do Lloyd TSB, reservando-se para um pronunciamento definitivo sobre a questão até o final de outubro. Mas o governo de Brown tomou a dianteira, dizendo que agia em nome do “interesse público” e que, portanto, iria proceder à aplicação das medidas de qualquer maneira.

Larry Eliot, editor de economia do The Guardian, comentou em vídeo gravado na página do jornal, que chegara “a hora da esquerda”. É claro que “esquerda” neste contexto londrino, quer dizer algo diferente do que em Caracas ou mesmo no Rio de Janeiro. Quer dizer a defesa de uma melhor e mais profunda regulamentação dos mercados, coisa com que todos, no momento (na página da CBN vi comentário até do Arnaldo Jabor neste sentido!!) parecem concordar.

Parecem? Vejamos. A reação da The Economist é muito sintomática neste sentido. A revista é uma publicação seríssima, aberta ao debate político e econômico de uma multiplicidade de correntes, mas com uma posição editorial declarada e assumida em defesa do livre mercado (por isso mesmo, por sua posição ser aberta e declarada, é dos jornais mais confiáveis, daqueles que ainda procuram distinguir fato de opinião).

Em artigo de 9/10 (“Saving the System”), em tom de editorial, declarava: “Este é um momento de se por de lado dogmas e política e de se concentrar em respostas pragmáticas". Isso significa mais intervenção do governo e mais cooperação, a curto prazo, do que contribuintes, políticos ou mesmo jornais pró livre-mercado gostariam normalmente de admitir. Depois de assinalar que, só em setembro, 159 mil trabalhadores norte-americanos perderam o emprego, e que o custo da empreitada já está chegando nos Estados Unidos a 1 trilhão de dólares, duas vezes o custo da guerra no Iraque, diz o jornal: “A direção da globalização vai mudar”.

“Nas últimas duas décadas a crescente integração da economia mundial coincidiu com a ascensão intelectual de um tipo anglo-saxão de capitalismo do livre-mercado, com os Estados Unidos como seu “cheerleader” [aquelas meninas que ficam agitando pompons e mostrando as pernas na frente das bandas durante os jogos desportivos nos EUA].” “A integração global tem sido, em grande parte, uma questão de triunfo dos mercados sobre os governos”.

Mas para a publicação, esse processo está sendo revertido de três modos, ou em três frentes:

1) As finanças do Ocidente voltarão a ser regulamentadas.

2) O equilíbrio entre o Estado e o Mercado está mudando em outras áreas, além da de finanças. Exemplo: o do preço dos alimentos, onde vários governos estão tomando medidas estritas de controle de preços, de limitação de exportações e outras, em escala mundial.

3) Os Estados Unidos estão perdendo a sua posição de vanguarda econômica e a sua autoridade intelectual, em favor de nações que mantém uma posição forte quanto à capacidade de crédito, como a China. (The Economist cita a frase do premiê chinês sobre serem os países do Ocidente os “mestres” e os outros os “discípulos” em matéria de economia: “parece que os mestres estão em dificuldade”.)

Mas – e aí vem a volta do parafuso – arremata a publicação, criada em 1843 com a precípua missão de defender o livre mercado e o mínimo de intervenção governamental na economia, não se deve atribuir toda a crise apenas à desregulamentação das operações financeiras. Muito se deve a intervenções do Estado, através de “subsídios equivocados”, como os da proteção agrícola ou no campo dos biocombustíveis, ou ainda, como é o caso presente, no campo das hipotecas, provocando a distorção dos mercados.

“Tão provocativo quanto isso possa soar no clima febril e perigoso de hoje, mercados mais livres e mais flexíveis ainda farão mais pela economia mundial do que a mão pesada do governo”.

Está certo The Economist, pelo menos em relação a si mesmo: afinal, momento é momento, missão é missão.

Fonte: Agência Carta Maior

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