quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A fatura da anarquia liberal

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por Almir Ribeiro

O economista Joseph Stiglitz observou que as conseqüências da atual crise financeira para o fundamentalismo de mercado serão equivalentes ao que a queda do Muro de Berlim significou para as economias dos países comunistas. Com efeito, a crise bancária desencadeada há um ano por uma avalanche de inadimplência no mercado hipotecário dos EUA demoliu pilares vitais do capitalismo, entre os quais centenárias instituições financeiras essenciais para o funcionamento das engrenagens financistas de Wall Street. E corroeu, de forma irreversível, a credibilidade do sub-regulamentado mercado financeiro do país e de seus agentes anarquistas.

O que o mundo assistiu na semana passada foi a vaporização dos dogmas da absoluta capacidade do mercado de se auto-regular. Princípios fundamentais do consenso de Washington restaram desmoralizados em seu mais simbólico domínio, na medida em que as opiniões de norte-americanos convergiam em favor da redentora intervenção do Estado para reverter uma situação de falência do mercado financeiro e endividamento dos cidadãos. Doutrinados e doutrinadores viraram a casaca liberal e, dedos cruzados, assistiram à votação do trilionário pacote de injeção de recursos dos contribuintes na veia do mercado. A emergência silenciou os brios liberais e o pacote foi aprovado com sobras de apoio. O mundo terminou a semana bastante diferente, não importa qual seja o desfecho da crise.

O terremoto de Wall Street segue propagando suas ondas destrutivas para outros destinos mundiais. A Europa já está remediando seus mercados financeiros. Embora a proporção do estrago seja muito menor que os EUA, não são poucos os bancos que foram socorrer-se nos recursos públicos. Já sob as nuvens escuras da recessão, os líderes do G8 no continente reuniram-se neste fim-de-semana, preocupados em injetar confiança em suas praças financeiras. Essa substância tão essencial ao capitalismo de mercado, a confiança, começa a escassear também no outro lado do Atlântico, mas os líderes de Alemanha, França, Inglaterra e Itália deram um claro recado de garantia de apoio público aos seus bancos em dificuldade. Os banqueiros do velho continente brindam aliviados, enquanto os contribuintes têm motivos de sobra para se preocupar com a predisposição de seus governos à socialização dos prejuízos. Nessa roteiro, a queda do muro tende a ganhar mão dupla no imaginário libertário europeu. “Berlim Oriental tinha lá seus muitos encantos”, dirão os novos sócios do generoso estado europeu.

Qualquer que seja a estratégia dos países para se proteger da crise, pode-se estimar que já não o farão à reboque da política de Washington. Os governos não aguardarão a posse do presidente dos EUA para conhecer os novos regulamentos financeiros e adequar os seus próprios modelos em sintonia automática com Wall Street. É até provável que ocorra o contrário, dada a fragilidade do paquidérmico mercado norte-americano e o senso de urgência com que cada país busca uma solução para seus próprios rombos.

Uma das deliberações dos líderes europeus no fim-de-semana foi justamente um urgente chamamento para revisão da regulamentação dos mercados financeiros. Embora não tenham encontrado consenso para promover uma reforma conjunta, nessas alturas da crise não há dúvidas de que cada qual seguirá o sentido do maior controle e fiscalização pública, o que significará uma freada na libertinagem financeira em nível mundial. São pressões exógenas como essa que começam a minar a liderança dos EUA na operação das finanças mundiais. É um sinal de que as conseqüências da crise para o país irão muito além da ressaca do fim da festa das alavancagens meteóricas, que faziam jorrar dinheiro das torres envidraçadas de Manhattan. A reconfiguração das regras dos mercados pode desarticular o modus operandi da dominação econômica norte-americana, implicando num severo golpe às ambições hegemônicas do país. Essa é somente a primeira fatura da anarquia liberal!

Fonte: Carta Capital

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