quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Lalau, a anedota

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por Rodrigo Martins

A descoberta do desfalque milionário de recursos públicos na construção do Fórum Trabalhista da Barra Funda, em São Paulo, completa dez anos. Os processos movidos contra os autores do crime continuam a patinar em terreno pantanoso. O excesso de recursos e a lentidão do Judiciário beneficiam os responsáveis pelo rombo, estimado em 169 milhões de reais, que continuam livres, apesar das pesadas condenações. A única exceção é o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, ex-presidente do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), hoje com 80 anos. Ele nunca deixou a condição de preso desde que se entregou à Polícia Federal, em 2000, após 227 dias foragido. Ainda assim, goza do benefício da prisão domiciliar, em seu confortável casarão de estilo colonial no bairro paulistano do Morumbi.

Agora, o Ministério Público Federal (MPF) se prepara para uma batalha. Os procuradores buscam responsabilizar Nicolau por improbidade e recuperar o dinheiro supostamente desviado por ele e pelos demais réus. Nas contas da Procuradoria, seriam mais de 504 milhões de reais em valores atualizados. O magistrado aposentado, o ex-senador Luiz Estevão e os empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Ferraz estão condenados, desde maio de 2006, pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal. Somadas, as penas chegam a 115 anos de prisão por desvio de recursos, corrupção, estelionato e formação de quadrilha. À exceção do ex-juiz, todos aguardam em liberdade a apreciação do recurso que pede novo julgamento.

Na prática, o processo está parado há cerca de um ano. O recurso que solicita uma nova audiência, desta vez no Superior Tribunal de Justiça, foi rejeitado pela desembargadora Suzana Camargo, vice-presidente do Tribunal Regional Federal (TRF). Mas os advogados de defesa conseguiram anular a decisão, sob a justificativa de que ela havia sido relatora do julgamento que condenou os réus. “De lá para cá, nenhum outro juiz apreciou o pedido. Está tudo parado”, comenta a procuradora Janice Ascari.

A pendência pode favorecer os acusados, com a prescrição dos crimes. Condenado a 26 anos de prisão, Lalau não pôde ser sentenciado por formação de quadrilha no julgamento do TRF em razão disso. “Como o juiz aposentado tem mais de 70 anos, ele é beneficiado com a redução dos períodos de prescrição, que varia de crime para crime. Já foi um avanço ele ter sido condenado, porque, se o julgamento fosse adiado, ele estaria livre. Os crimes iriam prescrever no dia seguinte”, diz a procuradora. O escândalo foi descoberto em 1998. Os procuradores constataram que apenas 64% da obra fora construída, com 98% dos recursos liberados. Abandonada naquele ano, após consumir 234 milhões de reais, só seria retomada quatro anos depois. O tamanho do rombo foi estimado por peritos da USP.

Boa parte dos pagamentos efetuados à empreiteira Incal, responsável pela obra, era repassada ao Grupo OK, de Estevão. No decorrer da investigação, descobriu-se que 90% das cotas da Incal pertenciam ao conglomerado do ex-senador. Também foram rastreados depósitos de 1 milhão de dólares de uma conta do empresário, nos Estados Unidos, para outra de Nicolau, na Suíça.

Desde que o MPF apresentou a denúncia, em 2000, não pararam de surgir obstáculos. Por três anos, juízes de diferentes instâncias bateram cabeça para determinar qual era o tribunal competente. Além disso, as dezenas de recursos apresentadas pela defesa atrasaram os julgamentos.

O ex-juiz Nicolau é o único condenado pela Justiça Federal no estado de São Paulo que cumpre a pena em sua própria residência, sob vigilância policial. Recebeu o benefício sob a justificativa de sofrer de problemas cardíacos e depressão. Antes disso, passou oito meses na Casa de Custódia da PF. Só retornaria à cadeia em duas ocasiões, e apenas por alguns dias, por insistência do procurador Rogério Dassié, que acompanha a sua execução penal. “Os laudos médicos apresentados pela defesa não são convincentes. Um psiquiatra, por exemplo, se aventurou a diagnosticar problemas cardíacos”, diz Dassié. Um relato do psicólogo Armando Rocha Júnior, que avaliou Nicolau a pedido da Secretaria da Administração Penitenciária, leva à suspeita de que Lalau possa estar se valendo de um subterfúgio. Diz Rocha Júnior: “Solicitado a ficar sentado para a realização das avaliações psicológica e psiquiátrica, somente o fez com a ajuda de seis homens, em contradição com a postura impositiva que adotou, em relação aos agentes que o acompanhavam, ao rejeitar a maca para retornar à ambulância”.

Responsável pela defesa de Nicolau, o advogado Francisco de Assis Pereira afirma que seu cliente não finge. E sustenta a tese de que não houve desvio de recursos na obra do TRT paulista. “Se foram desviados 169 milhões de reais, de um contrato de 234 milhões, 70% do valor do prédio foi desviado. Então, como o edifício pôde ser erguido? E por que a obra foi concluída, quatro anos mais tarde, por muito menos?” O criminalista também contesta os depósitos de Estevão em conta suíça de Nicolau. “O que houve foram transações entre contas do próprio juiz.”

A procuradora Janice Ascari atribui a diferença nos valores à inflação ocorrida no período entre o suposto desvio e a conclusão da obra. Segundo ela, documentos do Departamento de Justiça dos Estados Unidos comprovam os depósitos de Estevão para Nicolau.

Com esse dinheiro, o juiz teria comprado um apartamento em Miami, leiloado judicialmente. “Há 870 mil dólares à disposição das autoridades brasileiras nos Estados Unidos. Uma conta de 4 milhões de dólares na Suíça também está bloqueada. Mas o dinheiro só pode ser repatriado depois que o processo criminal for concluído”, afirma a procuradora.

À época do escândalo, Luiz Estevão controlava dezenove empresas, com faturamento anual de 300 milhões de reais. Também teve os bens bloqueados. Único senador cassado desde o fim da ditadura, perdeu o mandato em 2000, por quebra de decoro parlamentar, após negar à CPI do Judiciário sua participação no esquema. Por conta do processo, foi preso algumas vezes. Sempre obteve a liberdade em pouquíssimo tempo. Hoje, a face mais visível do ex-senador é o Brasiliense Futebol Clube, de sua propriedade, que disputa a Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro. No fim de setembro, ele esteve às voltas com a Justiça novamente, desta vez na esfera desportiva. Teve de prestar esclarecimentos pelos gestos obscenos que fez contra a torcida do Gama, que, da arquibancada, havia ensaiado um provocativo coro: “Ladrão, ladrão!” Também estão em liberdade os empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Ferraz, sócios da Incal.
Uma situação muito distante da realidade de países onde a Justiça funciona com o mínimo de celeridade. É emblemático o caso da Enron, nos Estados Unidos, a maior falência da história americana até então, provocada por fraudes financeiras. Após a quebra da empresa, em 2001, descobriram-se 13 bilhões de dólares em dívidas. Em menos de cinco anos, os responsáveis pela fraude sentaram no banco dos réus. Em 2006, Ken Lay, ex-presidente da Enron, foi condenado em dez processos por fraude e conspiração. Morreu de infarto antes da definição da pena. No mesmo ano, outro ex-presidente da companhia, Jeffrey Skilling, foi condenado a 24 anos de prisão. Cumpre pena num presídio em Minnesota.

Após quatro anos de paralisação das obras, o Fórum da Barra Funda finalmente foi concluído em 2004. Precisou do aporte de mais 60 milhões de reais. Agora, o moderno edifício de 19 andares abriga as 90 varas trabalhistas da capital, onde circulam 20 mil pessoas diariamente. “A nova sede carrega o estigma do escândalo, mas contribui para melhorar as condições de trabalho e o atendimento dos usuários”, comenta a juíza do Trabalho Maria Cristina Trentini.

Fonte: Carta Capital

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