quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Segundo turno: a história embutida no voto

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ELEIÇÕES 2008

Segundo turno: a história embutida no voto

Embora tenha definhado na maior parte do país, o velho udenismo, a ARENA e o PFL respiram especialmente em São Paulo, onde a expressiva votação de Gilberto Kassab (DEM) tem sido apontada como a maior obra do governador José Serra (PSDB) em todo o seu mandato. Sorriso bonachão ("Fofão", um boneco, é o símbolo infantilizado de sua propaganda) , uma arroba e meia mais magro, zero de formulação mental, Kassab oferece-se como a expressão corporal adequada ao aggiornamento à frio perseguido pela direita.

A União Democrática Nacional (UDN), criada em abril de 1945 como uma trincheira belicosa de oposição a Getúlio Vargas (e que tinha em Carlos Lacerda, o “Corvo”, uma de suas expressões mais agressivas), fixou no país o ideário da luta contra a “subversão”, contra a reforma agrária, contra a liberdade sindical, contra a ampliação dos direitos sociais, contra a soberania nacional e contra a intervenção do Estado na economia.

A UDN foi extinta em 1964. O golpe militar que ela ajudou a organizar instituiu então o regime bipartidário e os udenistas se dividiram: a ala mais conservadora filiou-se à Aliança Renovadora Nacional (Arena), braço civil da ditadura militar, que em 1980 deu lugar ao PDS, Partido Democrático Social.
A redemocratização permitiu um realinhamento ideológico mais amplo e deu nova expressão à estrutura político-partidária brasileira. O núcleo duro do PDS que tinha entre seus líderes Antonio Carlos Magalhães e Agripino Maia, indicados, respectivamente, como prefeitos biônicos de Salvador e Natal pela ditadura, fundou então, em 1985, o Partido da Frente Liberal, o PFL.

Entenda-se por "liberal" aí a mera adaptação da narrativa política que serviu ao regime militar - a exemplo do que ocorreu entre os ventríloquos da mídia - ao idioma da redemocratização. O ideário semeado pelo udenismo permaneceria intacto nesse trânsito. Carlos Lacerda foi substituído por replicantes sem o brilho de sua oratória golpista e a léguas de distancia de seu escopo intelectual. Certos neologismos incorporaram-se ao velho discurso anti-nacional e anti-popular, cimentado por uma resistência esférica a qualquer avanço sobre o privilégio das elites.

Entre as inovações do léxico abusou-se à larga de termos como desregulação, privatização, ”as reformas”, microagenda, auto-regulação de mercados, redução do custo Brasil etc. Enfim, toda uma gororoba que a crise atual e a estatização em curso no sistema financeiro mundial reduziu a uma montanha desordenada de ferrugem e ferro velho.

Seria ingênuo, porém, não enxergar a persistência dos interesses assim vocalizados na disputa política subterrânea travada neste segundo turno das eleições municipais. Na verdade, em alguns lugares, o voto só recupera sentido político para além do cinismo e da desilusão, se a história embutida em cada escolha puder ser iluminada nesse curto período de tempo que antecede o retorno às urnas.

A maquiagem dos anos 90 garantiu generosos nacos de poder ao conservadorismo brasileiro, que experimentou um de seus píncaros de influência na coalizão de centro-direita (PFL-PSDB) que sustentou os dois mandatos tucanos até 2002. Embalava esse tour de force “modernizante” a meta-síntese explicitada por Fernando Henrique Cardoso, a saber, destruir o legado de Vargas do Brasil , o que incluía avançar sobre os diretos trabalhistas e promover o desmonte da presença do Estado na economia, requisito para escancarar nosso mercado ao livre fluxo de comércio e de capitais.

É preciso reconhecer a eficiência dessa plataforma. Ela avançou o bastante, inclusive à esquerda, para subtrair defesas cruciais das quais o Brasil poderá se ressentir nesta crise, como é o caso do controle sobre a conta de capitais. Ademais, só por pouco, muito pouco, não coroou o processo de privatizações com o fatiamento da Petrobrás, que de qualquer forma teve seu capital aberto pagando polpudos dividendos anuais aos acionistas da Bolsa de Nova Iorque.

O figurino “liberal” dos egressos da ARENA, do PDS e da UDN, no entanto, não resistiria à oxigenação da história propiciada pelo avanço do debate democrático que ampliou o discernimento popular e pavimentou a reestruturação das redes de lutas sociais. Nesse sentido se a reconquista da democracia foi um processo longo e penoso para a esquerda, mostrou-se demolidor para o ambiente abafado no qual se protegiam, proliferavam e agiam as forças da direita.

Apenas para citar alguns marcadores históricos, tivemos desde o final dos anos 70 o fim da censura (com avanços da imprensa independente), a Lei da Anistia, a primeira eleição para governadores, o ciclo das grandes greves operárias do ABC, a criação do Partido dos Trabalhadores, a Constituição de 1988, os FSMs, a derrubada de Collor, a eleição de Fernando Henrique Cardoso e a dupla vitória de Lula, em 2002 e 2006.

A direita brasileira não passaria impunemente por esse processo. Ele escancarou o rosto, a agenda e o discurso do PFL iluminando entranhas daquilo que havia de mais retrógrado e elitista no espectro político do país. Nas eleições de 2006 essa transparência mostrou-se letal: o PFL só elegeu o governador do Distrito Federal. Sua bancada encolheu de 84 deputados federais, eleitos em 2002, para 65. O ideário e a sigla haviam se tornado inviáveis sob as novas condições de vento e temperatura, impondo-se uma recauchutagem urgente para que o barco não viesse a afundar de vez.

Em 2007 as forças herdeiras da ARENA e da UDN promoveram uma retirada branca da cena política. Em março, o PFL trocou de nome e mudou sua face pública. Foi assim que surgiram os Democratas, inicialmente identificados como DEMO, tendo à frente uma nova geração da mesma cepa: em substituição a ACM (falecido) e a Bornhausen - enterrado vivo pelos eleitores - emergem Rodrigo Maia Filho e Antonio Carlos Magalhães Neto.

Esse processo de “rejuvenescimento” e luta pela sobrevivência eleitoral da direita brasileira registra um novo e importante capítulo nas eleições municipais deste ano, sabidamente uma preliminar para 2010. Embora tenha definhado na maior parte do país, o velho udenismo, a ARENA e o PFL respiram especialmente em São Paulo, onde a expressiva votação de Gilberto Kassab (DEM-SP) tem sido apontada como a maior obra do governador José Serra (PDS-SP) em todo o seu mandato.

Sorriso bonachão (“Fofão”, um boneco, é o símbolo infantilizado de sua propaganda) , uma arroba e meia mais magro, zero de formulação mental, Kassab oferece-se como a expressão corporal adequada ao aggiornamento à frio perseguido pela direita nessa luta de vida ou morte sob o sol implacável da democracia. Lances igualmente cruciais para tornar palatável a renovação da aliança PSDB/PFL em 2010 estão sendo jogados em outras praças do país, nem sempre com os protagonistas principais na linha de frente dos holofotes.

Em Natal, José Agripino conseguiu sucesso digno de registro ao vampirizar uma “celebridade” jovem que atende pelo sugestivo nome de MiCarla. A filiada do PV assegurou assim a continuidade da hegemonia da direita na capital do Rio Grande do Norte. No Rio, a indiscutível sensibilidade reptilínea de César Maia (com Rodrigo Filho à tiracolo) já botou o ovo da serpente DEM na candidatura de Fernando Gabeira, declarando seu apoio a um personagem cuja trajetória –supostamente— poderá acrescentar alguma transfusão de sangue novo à direita brasileira.

Um velho filósofo barbudo ensinou há muito tempo que não importa o que os homens pensam sobre a sua importância e papel na História. O que os define de fato é o lugar efetivo que ocupam na disputa entre forças antagônicas num determinado momento histórico. Talvez isso ajude a reduzir a angústia do voto no segundo turno das eleições de 2008 em lugares onde a escolha envolve opções complicadas, e em outros, onde elas não são propriamente empolgantes.

* Saul Leblon é jornalista

Fonte: Agência Carta Maior

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