domingo, 12 de outubro de 2008

Feios, sujos e malvados - artigo de Xico Sá

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Artigo de Xico Sá


- Que banco que nada, banco é lugar de malandro ou de namorado, eu durmo é aqui na beira do lago, ainda escuto o barulhinho da água, parece o do riacho perto de casa lá em Piracicaba – diz o paulista Francimar Matias, 42, morador de rua do centrão de SP, que acaba de escolher sua nova cama no jardim da Praça da República, reinaugurada há cinco dias. Nascido no Sudeste como a maioria dos sem-teto e mendigos da cidade – é o que revelam as pesquisas do gênero desde 2004-, Francimar, esfarrapado mas altivo, camelô de bugigangas e discos piratas na 7 de Abril, é uma das milhares de evidências demasiadamente humanas de que o urbanismo à prova de miseráveis da gestão Kassab (PFL) não tem conseguido limpar os “feios, sujos e malvados” das passagens públicas como desejava.

Para namorar, os poucos bancos da novíssima República, uma das praças mais importantes da paulicéia, também não servem. Entre o pombinho e a pombinha existe uma barra de ferro que impede, digamos assim, um beijo mais aconchegante ou até o mais pudico dos amassos. Os novos arquitetos da destruição amorosa nem pensaram no afeto que se encerra lindamente no passeio público. A idéia explícita era apenas consolidar a guerra antimendigo ou antivagabundo, como diria o próprio alcaide. A tentativa de limpa começou com uma rampa antipobreza na região da avenida Paulista e seguiu na perseguição a mendigos de Higienópolis, ainda na gestão Serra, depois abriu um fosso antibanho na fonte da Sé, desenhou os novos bancos na praça dom José Gaspar e continua firme no mandato do vice que assumiu o comando.

O ideólogo da tentativa maluca de higienização do centro –como se fosse possível varrer a miséria com maquiagens urbanas de empreiteiras- chama-se Andrea Matarazzo, batismo mais imigrante impossível na cosmopolita SP, o supersecretário, a eminência parda, quase o prefeito da cidade, homem-forte deixado no cargo das subprefeituras pelo ex-prefeito e hoje governador do Estado –uma maneira de continuar, de certa forma, no controle do município ou, no mínimo, monitorando as ações do pefelê de Kassab.

O que ele, o ideólogo, tem dito sobre a tentativa frustrada de limpeza nas ruas? As aspas são as de sempre: não há política contra mendigo ou sem-teto, apenas uma forma de garantir o espaço público para todos, o projeto original da República, do começo do século passado, não tinha bancos blábláblá etc.

Um aviso aos transeuntes: os mais gordinhos também não cabem entre os arcos de ferro que fragmentam os bancos de madeira da nova República. Só valem para sentados e de espinhas eretas. Os gastos de R$ 3,1 milhões resultaram numa praça apenas dedicada a passantes. É um tapa na invenção da praça grega e pública. A polícia e a Guarda Municipal cuidam de reafirmar o conceito urbanístico aos desavisados: “Circulando, circulando, circulando”.

- Fui deitar ali no chão, ontem de tarde (na última sexta-feira), e tomei nas orelhas de um policia - conta Edevaldo Filgueiras, 40, mineiro de Araguari. Assim como Francimar, que deixamos lá na cumeeira desta pirâmide social invertida, apenas um desses tantos refugos dos novos tempos, mix de seguidos desempregos, desilusões, desordem na família, algumas doses de álcool a mais e a ressaca desencantadora das ruas. E não me cabe aqui a guerra moral das ligas das Senhoras Católicas ou Evangélicas. Filgueiras foi desandado e desandou. Ponto.

Jonas, nome para lá de fictício, foi mais além: entrou no crack e dorme no chão da nova praça, sob o olhar austero do sr. Luiz Lázaro Zamenhof, que vem a ser o criador do Esperanto, a língua utópica do mundo todo, e habita a praça na condição de estátua suja de merda de pombo. Jonas tem apenas 25 anos, fala como se fosse um personagem urbano de Guimarães Rosa, nonada, uns grunidos, bem feito para o cronista, quem manda chegar na vida alheia e que só a ele pertence –inclusive para decidir sobre o seu cachimbo!- cheio de perguntas. Há um sorriso alucinado por detrás daquela nuvem de fumaça azulada na noite dos nóias, como são denominados os Jonas nada bíblicos, corruptela de paranóia, de São Paulo.

Difícil alguém assumir que é mendigo no chão da praça. Tem muito catador de papel, camelô bissexto, gente que até tem família nos arredores da capital, os nóias, claro, ladrões de pouca importância, pois ali não dorme assaltante de bancos ou grandes valores e ninguém acusado de enriquecimento ilícito. Haja descuidistas e um magote de gente sem grana para ir e vir de trem e ônibus diariamente dos arredores de SP, como o casal Arimatéia Soares, 44, paulista de Mauá, na região metropolitana, e Lúcia Pontes (este repórter se recusa a perguntar idade de mulher, não insistam!), baiana de Vitória da Conquista.

Donos de uma banca quase virtual de confecções, Arimatéia e Lúcia ficam dois dias seguidos no centro e voltam para dormir uma noite no “barraco” em Carapicuíba, na região metropolitana. Quase virtual? Sim, quem flana, como este cronista, ou quem trabalha no centrão de SP sabe como funciona hoje a venda dos camelôs. Eles ficam nas ruas exibindo cartelas com fotos das mercadorias, para fugir do “rapa”, negociam com os fregueses e vão buscar os produtos entocados entocados em corredores de edifícios, debaixo de balcões de botecos na área e outros “mocós” secretos.

Sim, você ai, amigo de plantão do conservadorismo ou da higienização de fato, vai me dizer que os moradores de rua poderiam dormir nos abrigos da prefeitura. Tem razão, muitos dormem. Pena que casais como Arimatéia e Lúcia, que deixaram mais dois filhos no “barraco” com uma tia, não podem dormir por lá, é proibido o acasalamento. São cerca de 7 mil vagas para cerca de 12 mil, no mais acanhado dos cálculos de hoje, descobertos que dormem sob o sereno. Como reza o liberalismo clássico, nem todo “homeless” tem saco para enfrentar a burocracia e o “fichamento” dos abrigos, têm direito a circular livremente por onde entenderem. Além da mulher, nem o cachorro, fiel amigo dos viadutos, pode entrar nestas casas públicas de pernoite. Os mendigos alegam também que por lá os roubos são freqüentes. Até usar barba, reparem só, é proibido, têm que cortar os cabelos e ficar “limpinhos”. Mais seguro e honesto mesmo é dormir sob a lua na sarjeta.

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