domingo, 12 de outubro de 2008

O que faltou dizer sobre a sentença de Brilhante Ustra

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Depois de passar 23 anos alegando inocência, o ex-comandante do DOI-Codi/SP utilizou uma brecha jurídica para obter o arquivamento de um processo sem que fosse discutido o mérito da questão; e tentou transferir toda a culpa para o Exército no outro processo, mas acabou sendo declarado responsável pelas torturas infligidas à Família Teles e pelo sequestro de duas crianças.

A 23ª Vara Cível de São Paulo, em sentença publicada neste dia 9 de outubro, oficializou a condição de torturador do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar.

Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a tal período, durante o qual passaram pelo DOI-Codi cerca de 2 mil cidadãos presos por suspeitas de “subversão” ou “terrorismo”.

E, no total dos seus seis anos de operações, o DOI-Codi prendeu (pelo menos) 2.355 opositores do regime militar e assassinou (no mínimo) 47 deles, inclusive o jornalista Vladimir Herzog. Como nem todos os casos foram documentados, os números reais devem ser maiores.

A ação declaratória foi movida pelo casal Maria Amélia e César Teles; pelos filhos Janaína e Édson; e por Criméia, irmã de Maria Amélia.

César, Maria Amélia e Criméia foram presos em 1972. Janaína e Édson, então com 5 e 4 anos, chegaram a ser levados de camburão ao DOI-Codi, como uma forma de tortura psicológica contra os pais e tia.

Eis como Édson lembra o ocorrido:

– Nas dependências deste então órgão público/estatal pude ver minha mãe e meu pai em tortura. (...) Fui levado a um lugar onde, através de uma janelinha, a voz materna, que meus ouvidos estavam acostumados a escutar, me chamava. Porém, quando eu olhava, não podia reconhecer aquele rosto verde/arroxeado/ensangüentado pelas torturas que o oficial do Exército brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Ustra, havia infligido à minha mãe. Era ela, mas eu não a reconhecia.

A sentença do juiz Gustavo Santini Teodoro assinala que o DOI-Codi era "uma casa dos horrores, razão pela qual o réu não poderia ignorar o que ali se passava". Segundo o depoimento das testemunhas, Ustra comandava as sessões de tortura com espancamento, choques elétricos e tortura psicológica. Os gritos e choros dos presos eram ouvidos até nas celas. Daí a conclusão do magistrado:

– Não é crível que os presos ouvissem os gritos dos torturados, mas não o réu. Se não o dolo, por condescendência criminosa, ficou caracterizada pelo menos a culpa, por omissão quanto à grave violação dos direitos humanos fundamentais dos autores.

Aliás, foi exatamente o que eu escrevi no início da ação, em novembro de 2006 (artigo O Outono do Torturador):

– Sua defesa alega que ele nada sabia das práticas cotidianas do órgão que comandava. Para tornar essa versão plausível, deveria ter anexado um atestado de surdez. Quem passou pelos porões da ditadura – ou, mesmo, morava nas redondezas – sabe quão inconfundível era a “trilha sonora” de uma sessão de tortura: os gritos raivosos dos torturadores e os urros inumanos dos torturados ao receberem choques elétricos; ruídos de socos, pontapés e objetos caindo.

Brilhante Ustra escreveu livros e mantém um site tentando, em vão, refutar o que já ficou estabelecido pelos historiadores e o conceito em que é tido pelas pessoas conhecedoras dos horrores dos anos de chumbo.

Entretanto, noutro processo que lhe moveram, pelo assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, desprezou a chance que teve de provar sua inocência, alegada desde que a atriz Bete Mendes, em 1985, o identificou como seu torturador.

Ao invés de deixar a ação seguir até que o mérito fosse julgado, a defesa conseguiu seu arquivamento sob a alegação de que uma das várias pessoas que acusavam Ustra não comprovara sua legitimidade como parte do processo (dizia ter sido companheira de Merlino, mas não anexara documentos que o provassem).

Ou seja, Ustra escapou pela tangente, aproveitando uma brecha jurídica para evitar a sentença que certamente lhe seria desfavorável.

E, no processo em que acaba de ser condenado, tentou fugir à responsabilidade por seus atos, transferindo-a totalmente para sua corporação, ao protocolar uma contestação segundo a qual "agiu como representante do Exército, no soberano exercício da segurança nacional".

Ou seja, sugeriu formalmente que o Exército tomasse seu lugar no banco dos réus, conforme se constata neste trecho:

– O Exército brasileiro é uma pessoa jurídica, sendo que, pelos atos ilícitos, inclusive os atos causadores de dano moral, praticados por agentes de pessoas de direito público, respondem estas pessoas jurídicas e não o agente contra o qual têm elas direito regressivo. (...) Todas as vezes que um oficial do Exército brasileiro agir no exercício de sua funções, estará atraindo a responsabilidade do Estado.

Mesmo assim, regabofes em solidariedade a Brilhante Ustra, realizados no Clube Militar (DF), reuniram centenas de oficiais, quase todos da reserva. Talvez o temor do que lhes ocorrerá caso os esqueletos saiam do armário seja tamanho que prefiram ignorar o comportamento um tanto constrangedor do homenageado...

A melhor definição sobre Brilhante Ustra deve ter sido a dada pelo ex-ministro da Justiça e ex-secretário da Justiça de São Paulo, José Carlos Dias:

– O coronel Ustra, premiado hoje como herói por seus camaradas, e que já foi adido militar no Uruguai durante o governo Sarney, encarna a lembrança mais terrível do período pavoroso que vivemos. Terá dito (...) que lutou pela democracia, quando, na realidade, emporcalhou com o sangue de suas vítimas a farda que devera honrar.

*Celso Lungaretti é jornalista e escritor, ex-preso político e autor do livro "Náufrago da Utopia".

Fonte: Agência Carta Maior

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