quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Ganhar uma medalha torna alguém um herói?

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por Leonardo Sakamoto

Aquilo que não dizemos, seja por uma escolha consciente ou um bloqueio inconsciente pode dizer mais do que um intenso blá-blá-blá de justificativas ou explicações. Isso vale para as relações pessoais, mas também para as profissionais, a vida política, os negócios, o sexo, enfim.

Uns podem dizer que essas pequenas coisas que ficam de fora são apenas detalhes insignificantes e que ao lhes dedicar muita atenção desviamos o foco do principal. Pode ser. Mas, como diriam os ingleses, “o diabo está nos detalhes”. Ou os franceses, optando por uma saída mais otimista, ao afirmar que “Deus está nos detalhes”. Particularmente, prefiro acreditar que é a sombra do tinhoso que ronda o que foi esquecido ou empurrado para as entranhas.

Um exemplo: durante uma matéria sobre o processo ajuizado pelo Ministério Público contra o ex-prefeito e deputado federal Paulo Maluf ontem, um repórter da TV Globo mostrou a avenida que foi alvo de superfaturamento. Não quis dizer o nome da via, ao contrário de outras matérias do mesmo canal que citam logradouros envolvidos em tramóias. Qual o nome da dita? Jornalista Roberto Marinho.

Era necessário esconder o nome da avenida? Creio que não, até porque não há relação direta entre o superfaturamento e o fundador das Organizações Globo - até onde sabemos. O jornalista foi mais realista que o rei? Seguiu alguma norma interna? Ou seja, uma pequena omissão já gerou várias perguntas – que nem apareceriam se o nome da avenida fosse dito.

Quem mora em São Paulo sabe que o nome original da avenida era Águas Espraiadas. Mas a prefeitura de São Paulo acabou por rebatizá-la dessa forma, homenageando um morto mais ilustre. Seria preferível, na minha opinião, que ganhasse o nome de Jornalista Vladimir Herzog, que se dedicou à liberdade e foi assassinado pela ditadura. Esconder os verdadeiros heróis, seja largando-os ao ostracismo, seja fazendo suas biografias competir com histórias de “heróis da elite” ou “heróis de ocasião” diz muito sobre um país e sobre sua mídia.

Hoje o herói é um nadador, ontem era um centroavante, amanhã, quem sabe, um jogar de tranca ou truco. O Senna ocupou espaço de mártir na Globo quando a seleção brasileira de futebol (que é a heroína de plantão) estava em baixa. Usineiros já foram chamados de heróis da nação pelo presidente da República. Quando um dono de mídia morre, há um esforço para que ele se torne a referência que não foi em vida - virar nome de avenida, ponte e hospital faz parte do esforço. Alguém vai me tacar uma pedra por colocar um ídolo do esporte e um usineiro de cana no mesmo bote. Mas não estou discutindo caráter, apenas dizendo que a mídia e o poder cria heróis sem nenhum constrangimento.

Ao centrar o foco nesses exemplos, considerando-os caminhos a serem seguidos, nos distanciamos de quem mereceria ganhar uma medalha de verdade. Perguntei a um amigo que cobre a área de esportes, quantos heróis são “fabricados” por ano na área. Ele respondeu dizendo que os exemplos de superação pessoal são os pinçados com mais freqüência.

Seguindo essa lógica, apresento um nome para ser incensado nem que seja por 15 minutos. Antônio acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas, pega duas conduções e vai até Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, é hora de começar a trabalhar o serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês mas que sinceramente não vale a pena – mas como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois não tem acesso ao Sírio Libanês, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender churrasquinho no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Como mora perto do autódromo de Interlagos, pôs sua churrasqueira perto de casa para conseguir algo em um final de semana lotado. A Guarda Civil Metropolitana levou tudo embora. Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Superação?

É claro que ninguém gostaria de seguir o exemplo de Antônio. A sua vida não tem o glamour de morar em Mônaco e sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro. Uma droga, para ser curto e grosso. Não adianta dizer que ele é feliz, que ele tem Deus no coração, que a família o ama. Isso é apenas jogar purpurina em cima da merda.

É Antônio, mas eu podia colocar aqui uma lista de nomes, grossa como uma enciclopédia, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia-a-dia porque se desistirem, morrem - e nunca ganharão uma medalha por isso. Pelo contrário, são tratadas como restolho da sociedade, mão-de-obra barata, voto fácil, massa burra, pelas elites econômica e política. Apesar de servi-los, alimentá-los, transportá-los, enriquecê-los. Se usineiros são heróis, cortadores de cana são o que?

Na hora em que o nome de qualquer um desses, cuja desgraça é apenas um detalhe do sistema e por isso mantém-se escondida embaixo do tapete, fosse retirado das entranhas da sociedade, e gritado a plenos pulmões como alguém que merece ser um herói, não precisaríamos mais de heróis. E a vida seria outra.

Talvez seja bobo demais lembrar de Bertolt Brecht quando ele pergunta quem faz a história – “Um grande homem a cada dez anos. Quem pagava as despesas?”

Fonte: Blog do Sakamoto

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