quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Colômbia - Operação trampolim

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O bate-boca provocado por Uribe contra Chávez chamou a atenção do continente para as novas bases dos EUA, bem mais preocupantes que as Farc.


Por Antonio Luiz M.C. Costa


O governo do colombiano Álvaro Uribe quis abafar a oposição com mais um grande golpe midiático contra o venezuelano Hugo Chávez e o equatoriano Rafael Correa, mas esqueceu-se de considerar o ponto de vista dos demais vizinhos. Capturou, em um acampamento das Farc, três dos lança-foguetes AT-4 vendidos pela Suécia à Venezuela em 1988, alegou ter encontrado, em computadores da guerrilha, alusões a tentativas de compra de armas e equipamentos na Venezuela (citando o general e ex-diretor de inteligência policial Rangel Silva e o ex-ministro Rodríguez Chacín) e divulgou um vídeo editado, no qual “Mono Jojoy”, um dos líderes das Farc, diz ter contribuído para a primeira campanha de Correa, em 2006.

O caso das armas exige investigação e esclarecimentos, como os pediu o governo da Suécia, mas não basta para incriminar Chávez. Poderiam ter sido obtidas durante governos anteriores, desde Carlos Andrés Pérez, por roubo ou por suborno de oficiais venezuelanos. Há um ano, em setembro de 2008, o governo venezuelano anunciou a prisão de dois civis acusados de tentar assassinar o presidente, juntamente com a apreensão de armas que teriam sido roubadas de arsenais militares: um AT-4 e um canhão Carl Gustav. De resto, já foram encontradas entre os guerrilheiros armas procedentes de pelo menos 27 países, de foguetes antitanque estadunidenses, russos e chineses a fuzis búlgaros e norte-coreanos, passando por munições brasileiras.

Jornais dos EUA, inclusive The New York Times, fizeram o possível para amplificar as acusações de Uribe. Mas na América do Sul, o bate-boca entre Uribe e os vizinhos serviu menos para atiçar animosidade contra Chávez e Correa do que para permitir a eles ampliar a repercussão do acordo militar entre Bogotá e Washington.

Em 4 de agosto, foi Uribe, e não Chávez, quem teve de viajar de improviso para encontrar outros seis presidentes sul-americanos – passando pelo Brasil no dia 6 – e tentar explicar-se para evitar uma condenação na cúpula da Unasul marcada para 10 de agosto em Quito. À qual a Colômbia não comparecerá, por ainda estar de relações rompidas com o Equador em consequência do seu ataque a território equatoriano em março de 2008, que a isolou ante os demais latino-americanos.

Do ponto de vista dos vizinhos, a procedência duvidosa de algumas armas nas mãos de uma guerrilha moribunda preocupam pouco ou nada em comparação com a instalação, à porta de casa, de bases aéreas com o objetivo declarado de facilitar a movimentação das tropas dos EUA pela América do Sul.

A estratégia consta do White Paper on Global en Route Strategy (Livro Branco sobre Estratégia Global de Rotas). Disponível desde abril de 2009 no site da Air Force University, da Força Aérea dos EUA, propõe uma reforma, para 2015-2025, da infraestrutura de deslocamento aéreo das tropas do Pentágono. Segundo a introdução, esta ainda se funda nas bases estabelecidas no final da Segunda Guerra Mundial, prioriza a Europa e o Pacífico e não cobre adequadamente outras áreas críticas nas quais os EUA podem querer intervir.

Segundo o capítulo 12, intitulado Estratégia Sul-Americana, a região ainda não estava disponível para cargueiros como o Globemaster C-17 (um sucessor, desde 1993, do Hércules C-130 ainda usado pela FAB), pois as instalações ali criadas pelos EUA focalizaram “operações antidrogas” e não permitem envolver (engage) estrategicamente o continente, diz o documento do AMC (Airlift Military Command – Comando de Transporte Aéreo).

Mas o Comando Sul (USSouthCom) do Pentágono identificou Palanquero, na Colômbia, como uma “localização de segurança cooperativa” (CSL – base no exterior sem presença permanente de tropas em grande escala), da qual “metade do continente pode ser coberta por um C-17 sem reabastecimento. Se houver combustível disponível no destino, todo o continente, salvo a região chilena e argentina do Cabo Horn. Até que o USSouthCom estabeleça um plano de envolvimento mais robusto para esse teatro, a estratégia de situar uma CSL em Palanquero deve bastar para a mobilidade aérea na América do Sul”.

Embora Palanquero entre no plano como CSL “expedicionária, nível 4” – recurso contingencial, com capacidade limitada – seu objetivo é, nem mais nem menos, possibilitar uma eventual intervenção militar no coração da América do Sul. O objetivo não é a Venezuela e o Equador, é bom notar. De Porto Rico, que tem bases aéreas e navais de primeira classe, os C-17 já atingem esses países sem dificuldade. Mas a base na Colômbia coloca ao alcance imediato do Pentágono o Peru, a Bolívia, o norte do Chile, a Amazônia e, com reabastecimento, o restante do Brasil e do Cone Sul.

Também não se trata da África. O capítulo também discute como pôr esse continente ao alcance das tropas. Deixa de lado Recife (“a situação política com o Brasil não conduz aos acordos necessários”) e recomenda ao Comando “continuar a tentar obter acesso à base aérea de Caiena, na Guiana Francesa”, de onde um C-17 vindo de Charleston (Carolina do Sul) poderia chegar à África, com escala na ilha britânica de Ascensão.

Em 7 de maio, o orçamento do Pentágono submetido ao Congresso incluiu 46 milhões de dólares para adequar a base aérea colombiana de Palanquero (em Cundinamarca, a 100 quilômetros de Bogotá) e, na semana seguinte, o jornal colombiano El Tiempo noticiou que Uribe estava de fato negociando a base com o governo Obama. Em 2 de julho, a revista El Cambio acrescentou que a negociação visava substituir a base de Manta, no Equador, onde os EUA têm prazo até novembro para se retirar, e incluía ao menos mais duas bases, Apiay (na Amazônia) e Malambo (costa do Caribe) e possivelmente também Tolemaida (a 50 quilômetros de Bogotá) e Larandia (perto do Equador).

Em 15 de julho, o governo colombiano anunciou um “pré-acordo” com os EUA, a ser firmado até 20 de agosto para ter vigência até 2019. Segundo Bogotá, permitiria operações “antidrogas” nas três primeiras bases, mais a base naval de Bahía Málaga (Pacífico) com a possibilidade de ser estendida às outras duas já citadas e à base naval de Cartagena (Caribe), se necessário. A presença dos EUA, de 339 militares e 104 contratistas (mercenários), seria ampliada para 800 militares e 600 contratistas.

Isso deflagrou protestos da oposição e do Congresso (então em recesso) e do Conselho de Estado, que questionaram a legalidade de um acordo sem a sua aprovação. Em 17 de julho, enquanto os EUA anunciavam o encerramento da última operação “antidrogas” em Manta, a temperatura do debate subia em Bogotá. O ministro do Interior, Fabio Valencia, alegou não se tratar de novas bases estrangeiras, mas de mera autorização a militares dos EUA para “prestar assessoria técnica”. “As autoridades colombianas não sofrerão restrição nenhuma nessas bases, apenas aceitarão essa assessoria.” O Conselho e o Parlamento insistiram em que se trata de um acordo internacional que exige discussão e aprovação formal e senadores independentes anunciavam que inspecionariam as bases para “verificar em primeira mão” o que se passa.

O governo insistiu que as bases serviriam apenas à luta contra o narcotráfico e o terrorismo e o acordo proibiria seu uso em ataques a países vizinhos. Mas o alto investimento do Pentágono e o aumento de sua presença, no momento em que a guerrilha colombiana encontra-se quase debilitada, quase neutralizada, bastaria para tornar essas alegações pouco críveis, mesmo que a Força Aérea dos EUA já não tivesse explicitado que o propósito é outro.

A Suécia confirmara a procedência das armas desde abril e o vídeo com Jojoy é de 2008, mas Uribe lançou as denúncias contra Correa e Chávez precisamente neste momento. Deu credibilidade à afirmação dos venezuelanos e equatorianos de que o propósito das acusações era simplesmente desviar a atenção dos colombianos da questão das bases do Pentágono e os incentivou a alertar os governos dos países vizinhos – e não tão vizinhos – para a ameaça em potencial.

Brasil e Chile pediram que a questão das bases seja discutida na Unasul. O chanceler da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, articulou a reação dentro da União Europeia. Encontrou-se com Chávez e Celso Amorim e advertiu: “É preciso cuidado para evitar tensão e militarismo na América Latina. Essa não é a melhor resposta aos problemas na região”.

O golpe em Honduras e a postura ambígua do Departamento de Estado em relação à sua legitimidade deu aos bolivarianos mais motivos para desconfiar das oposições pró-EUA e das manobras de Washington. A articulação da IV Frota em águas latino-americanas e a transformação da Colômbia em plataforma e trampolim das tropas dos EUA podem estimular outros países a acordos igualmente agressivos com potências rivais, a começar pela Rússia, que corteja abertamente a Venezuela e a Bolívia com a oferta de assessoria militar e manobras conjuntas. Começa a haver motivos para preocupações com o risco de que uma escalada de militarismo e autoritarismo, tanto da direita quanto da esquerda, desemboque em nova tragédia como a dos anos 70.

Fonte: Carta Capital

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