Capitalismo, ao estilo de Sarah Palin
por Naomi Klein*
Do The New York Times
Estamos vivendo um momento progressivo, um momento em que o chão está se movendo sob nossos pés, quando tudo é possível. O que considerávamos inimaginável sobre o que poderia ser dito e esperado para um ano atrás, agora é possível. Em uma época como esta, é absolutamente crucial que sejamos tão claros quanto possível sobre o que queremos, pois pode ser que o consigamos.
Portanto, as apostas são altas.
Ultimamente tenho falado sobre os pacotes. Todos nós precisamos entender isso, pois é um roubo em andamento, o maior assalto da história monetária. Mas hoje eu gostaria de utilizar uma abordagem diferente: E se o pacote realmente funcionar, se o setor financeiro for salvo e se a economia voltar ao curso em que estava antes da crise? É isso que queremos? E como seria este mundo?
A resposta é que ele se pareceria com Sarah Palin. Prestem atenção, isso não é piada. Acho que não consideramos suficientemente o significado do momento Palin. Pensem sobre isso: Sarah Palin entrou no cenário mundial como candidata a vice-presidente em 29 de agosto, no comício da campanha de McCain, com muito alarde. Exatamente duas semanas depois, em 14 de setembro, o Lehman Brothers entrou em colapso, determinando o início da derrocada financeira global.
Assim, de certa forma, Palin foi a última expressão clara do capitalismo tradicional, antes que tudo desse errado. Isso é muito útil porque ela nos mostrou - com aquele seu jeito simples e singelo - qual era a trajetória da economia dos EUA antes de sua atual crise.
Ao nos oferecer este vislumbre do futuro, quase evitado, Palin nos ofereceu uma oportunidade de fazer uma pergunta essencial: Queremos chegar lá? Queremos salvar este sistema pré-crise, voltar para onde estávamos no último setembro? Ou queremos usar esta crise, e o mandato eleitoral para uma mudança séria após a última eleição, para transformar radicalmente este sistema? Precisamos ter clareza sobre nossa resposta agora, pois desde 1930 não tivemos a combinação potente de uma grave crise e um mandato claramente democrata-progressivo para realizarmos mudanças. Devemos usar esta oportunidade, ou a perderemos.
Assim, o que Sarah Palin estava nos dizendo sobre o capitalismo tradicional antes de ser grosseiramente interrompida pelo colapso?
Em primeiro lugar, vamos lembrar que, antes dela chegar, o público dos EUA, finalmente, estava começando a considerar a urgência da crise climática, com o fato de que nossa atividade econômica está em guerra com o planeta, de que mudanças radicais precisam ser feitas imediatamente. Estávamos tendo aquela conversa pra valer: ursos polares foram capa da Newsweek.
E então chegou Sarah Palin. A parte essencial de sua mensagem era essa: Esses ambientalistas, aqueles liberais, aqueles bom samaritanos estão todos errados. Não precisamos mudar nada. Não precisamos repensar nada. Continuem dirigindo seus carros que consomem litros e litros de gasolina, continuem indo ao Wal-Mart para comprar tudo que quiserem. A razão disso é um lugar mágico chamado Alaska. Venha pra cá e peque tudo que quiser.
"Americanos", ela disse na Convenção Nacional Republicana, "precisamos produzir mais petróleo e gasolina próprios. Escutem isso de uma garota que conhece a Encosta Norte do Alaska, temos muito dos dois".
E a multidão na convenção reagiu, cantando: "Perfure, baby, perfure".
Ao ver esta cena pela televisão, com aquela estranha e repugnante mistura de sexo, petróleo e patriotismo fanático, lembro que pensei: "Uau, a Convenção Nacional Republicana se transformou em um comício a favor de arrombar o planeta Terra". Literalmente.
Mas o que Palin estava dizendo é o que está embutido no próprio DNA do capitalismo: a ideia de que o mundo não tem limites. Ela estava dizendo que não existem consequências, ou deficiências do mundo real, pois sempre haverá outra fronteira, outro Alaska, outra bolha. É só seguir em frente e descobri-la. O futuro nunca virá.
Esta é a mentira mais confortante e perigosa que existe: a mentira de que o crescimento perpétuo, sem fim, é possível em nosso planeta finito. E precisamos lembrar que esta mensagem foi inacreditavelmente popular naquelas primeiras semanas, antes do colapso do Lehman. Apesar do histórico de Bush, Palin e McCain estavam em vantagem. E, se não fosse pela crise financeira, e pelo fato de que Obama começou a fazer conexões com os eleitores da classe trabalhadora, ao questionar a desregulamentação e economia do fomento indireto, eles poderiam ter ganhado.
O presidente nos diz que quer olhar para frente, não para trás. Mas para confrontar a mentira do crescimento perpétuo e da abundância sem limites, que está no centro das crises ecológica e financeira, temos que olhar para trás. E temos que olhar bem para trás, não apenas para os últimos oito anos de Bush e Cheney, mas para a própria fundação do país, à própria ideia de um estado colonizador.
O capitalismo moderno nasceu com a chamada descoberta das Américas. Foi a pilhagem dos incríveis recursos naturais das Américas que gerou o capital em excesso que tornou a Revolução Industrial possível. Os primeiros exploradores falavam desta terra como a Nova Jerusalém, uma terra com tamanha abundância sem fim, lá, disponível, tão vasta, que a pilhagem nunca teria fim. Esta mitologia está em nossas parábolas bíblicas - das enchentes e dos recomeços, dos arrebatamentos e das salvações - e está no centro do Sonho Americano da reinvenção constante. O que este mito nos diz é que não temos que conviver com nossos passados, com as consequências de nossas ações. Sempre podemos escapar, recomeçar.
Essas parábolas sempre foram perigosas, é claro, para as pessoas que já estavam vivendo nas terras "descobertas", para as pessoas que cultivavam essas terras através do trabalho forçado. Mas agora o próprio planeta está nos dizendo que não podemos mais acreditar nessas parábolas de eternos recomeços.
É por isso que é tão significativo que, justamente no momento em que algum tipo de instinto humano de sobrevivência surgiu, no momento em que finalmente parecíamos entender os limites naturais da Terra, Palin tenha aparecido, a nova encarnação do desbravador colonial, dizendo: Venham para o Alaska. Sempre há mais. Não pensem, apenas peguem.
Isso não tem a ver com Sarah Palin. Isso tem a ver com o significado daquele mito da constante "descoberta", e sobre o que ele nos diz a respeito do sistema econômico com o qual estão gastando trilhões de dólares para salvar. O que ele nos diz é que o capitalismo, deixado por sua própria conta, vai nos levar além do ponto no qual o clima pode ser recuperado. E o capitalismo evitará uma contabilidade séria - seja ela das dívidas financeiras ou das dívidas ecológicas - a qualquer custo. Isso porque sempre há mais. Um novo conserto rápido. Uma nova fronteira.
As pessoas estavam comprando aquela mensagem, como sempre fazem. Foi somente quando o mercado de ações quebrou que as pessoas disseram: "Talvez Sarah Palin não seja uma boa ideia neste momento. Vamos apostar no cara esperto para lidar com a crise".
Quase senti que havíamos ganhado uma última chance, um adiamento. Tento não ser apocalíptica, mas todas as pesquisas científicas que leio sobre o aquecimento global são assustadoras. Esta crise econômica, terrível como é, nos tirou daquele precipício ecológico no qual estávamos prestes a cair com Sarah Palin, e nos deu um pouquinho de tempo e espaço para mudar o curso. E eu acho que é significativo o fato de que, ao nos atingir, a crise trouxe quase que uma sensação de alívio, como se as pessoas soubessem que estavam vivendo além de suas possibilidades e foram pegas. De repente, passamos a ter a oportunidade de fazer coisas juntos, ao invés de comprar, e isso teve um efeito profundo.
Mas não estamos livres do mito. Essa cegueira intencional em relação às consequências, tão bem representada por Sarah Palin, está embutida na forma como Washington está reagindo à crise financeira. Há uma absoluta recusa em perceber como a situação é ruim.
Washington prefere jogar trilhões de dólares pelo ralo ao invés de descobrir a real profundidade deste buraco. Tal é a força da vontade de não saber.
Além disso, vemos muitos outros sinais da velha lógica retornando. Os salários de Wall Street estão quase nos mesmos níveis de 2007. Há um certo tipo de eletricidade nas declarações dos que alegam que o mercado de ações está reagindo.
"Já podemos parar de nos sentir culpados?", pode-se praticamente ouvir os comentaristas da TV a cabo dizendo. "A bolha está de volta?"
E eles podem estar certos. Esta crise não vai matar o capitalismo, nem mesmo mudá-lo substantivamente. Sem a enorme pressão popular por reformas estruturais, a crise vai provar não ter sido nada além de um duro ajuste. O resultado será uma desigualdade ainda maior do que havia antes da crise, pois nem todos os milhões de pessoas que perderam seus empregos e suas casas vão retomá-los, não mesmo. E é muito difícil reconstruir a capacidade de produção, uma vez que muitos equipamentos foram vendidos a preços baixos.
É apropriado chamar isso de "socorro financeiro". Os mercados financeiros estão sendo socorridos para evitar que o navio do capitalismo financeiro afunde, mas o que está sendo retirado não é água. São pessoas. São pessoas que estão sendo jogadas para fora do navio em nome da "estabilização". O resultado será uma embarcação mais leve e mais avarenta. Muito mais avarenta. Isso porque uma grande desigualdade - os super-ricos vivendo ao lado dos economicamente desesperados - requer o endurecimento dos corações. Precisamos acreditar que somos superiores aos que foram excluídos, para enfrentarmos cada dia. Assim, este é o sistema que está sendo salvo: o mesmo, mas mais avarento.
E a questão que enfrentamos é: Será que deveríamos socorrer este navio, o maior navio pirata que já existiu, ou afundá-lo e substituí-lo por um navio mais robusto, com espaço para todos? Um navio que não exija esses rituais de purga, durante os quais jogamos nossos amigos e nossos vizinhos fora para salvar as pessoas da primeira classe. Um navio que compreenda que a Terra não tem a capacidade suficiente para que cada um de nós viva cada vez melhor.
Mas um navio que tenha a capacidade de permitir, como o Presidente boliviano, Evo Morales, disse recentemente nas Nações Unidas, "que todos nós vivamos bem".
Não se enganem: o capitalismo voltará. E a mesma mensagem retornará, talvez promovida por alguém novo: Vocês não precisam mudar. Continuem consumindo tudo o que quiserem. Há muito mais. Perfure, baby, perfure. Talvez exista algum conserto tecnológico que faça com que todos os nossos problemas desapareçam.
E é por isso que precisamos ser absolutamente claros neste momento.
O capitalismo pode sobreviver à crise. Mas o mundo não poderá sobreviver a outra volta do capitalismo.
Fonte: Terra Magazine
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